sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Do tempo perdido e achado.

- Querendo que o amanhã fosse hoje é como meu tempo se esvai. Externou o escritor antes de apagar a luz e recolher seus objetos. Quando saia da oficina escutou murmúrios e gemidos. Ora, o que seria aquilo? Era tarde, e seus olhos já estavam mais cansados que seus pés. Resolveu voltar para conferir o murmúrio e tamanho foi o espanto quando ouviu: - Ei, como assim, aí desse lado o tempo passa rápido? Perguntava o papel. Sim, o papel, ao escritor que, com certo susto, mas intrigado pela espantosa expressividade da coisa morta, afirmou: - Um ano por aqui tá custando em média 365 dias. E Continuou: - São 365 prestações, pagas em dolorosas parcelas, que às vezes repetem-se dependendo do tédio do cliente.

A superfície que vinha sendo costurada por aquelas linhas grossas e bem desenhadas exclamou com certo desgosto: - É que esse mesmo ano, que eu não sei se é mais curto, bonito ou barato em outros lugares, pois daqui nunca saí, nasceu já com a vontade de se espreguiçar, de se amontoar por sobre os outros. Naquele sua fatídica primeira alvorada, ele certamente olhou para seus amigos que já estavam nos meus livros de história e... Quando o escritor o interrompeu: - Espera, você está dizendo que o tempo aí não é o mesmo daqui?

- Sim! Digo, não! Claro que não! O tempo é pueril pra você que julga estar perpetuando suas ideias em mim. Enquanto isso eu tenho que aguentar o mesmo toque, a mesma marcha, e o pior, a mesma história durante minha vida longa e, ao mesmo tempo, efêmera. Falou com tom vigoroso o papel. E seguiu: - Sabe aquele dia em que você esteve prestes a enlouquecer por causa da Juliana? Então, eu ainda carrego comigo aquele discurso chato. “Eu não sinto minhas pernas sem seu chão, eu não respiro mais sem seu ar...” Ah, eu ainda estou enojado com o pus que saiu daquela ferida. E aquele outro dia em que você...

O escritor levantou-se com raiva e fechou abruptamente o bloco que tinha às mãos. - Ah, que dane-se tu, infame. Tu só existes para e pelo meu divertimento. Eu só te tolero porque não busco respostas tuas, apenas ouve calado e transforma meu pensamento em memória. Não pense que és mais que isso! Meus dias são seus dias, e meu passado é só meu, se eu te contei é porque não preciso de sua confiança. Exclamou.

Pegou um copo d'água, uma taça de vinho, acendeu um cigarro, pigarreou um pouco e pensou: - O que ele quis dizer com “tempo pueril”? Será que o tempo do livro, o tempo da escrita é o tempo do passado, e quem será o tempo do futuro?

Divagou por horas a fio. Esperou a hora da madrugada virar hora do dia sem deixar-se tomar pela curiosidade de dialogar com o papel mais uma vez.

Até que após o dia esquentar e ele perceber que havia começado a esquecer suas ideias, não resistiu e abriu o bloco, e notou algo estranho: curiosamente ele estava em branco. Temeu por sua segurança, pois tinha certeza que já havia transformado aquele objeto. Sabia que sua interferência havia dado característica própria ao papel, à escrita.

Começou a revirar seus trabalhos antigos e estavam todos em branco. Tudo havia se apagado, não sobrara sequer os números de seus amores escritos no canto da bagunçada agenda. Procurou saber quantos cigarros havia fumado, quantas taças de vinho havia tomado e realizou que não estava bêbado.

- Que horas são agora? Que tempo é esse que eu estou? Quantos dias faltam pra hoje? Eu não sou ninguém sem minha memória. Exclamou.

O papel sorriu enquanto ele tentava lembrar da Juliana e do pus da ferida ainda aberta. E sorriu mais ainda quando o autor amargurava a perda do seu tratado tão elogiado e do qual tanto se orgulhara sobre literatura latino-americana.

- Merda, eu me maldigo á morte. Raios caiam sobre mim, sobre meu tempo que de nada agora vale, pois de nada sei sem minha alma no papel. Ecoou naquela oficina suja seu grito de desespero. Continuou: - Que meus medos voltem ao limbo e que meus traumas vão ao purgatório. Porque eu mesmo já estou completamente no inferno, no meu inferno.

O papel, faceiro, como que num passe de mágica e num lance de sorte olhou para seu mestre atordoado e disse: - Não se exalte, meu caro. Seu tempo é sua história. O que você escreveu em mim faz parte da minha eternidade frente à sua existência quase imperceptível. Faz parte da memória de quem me leu, e não só da tua.

Esperou o homem curvo virar-se espantado ao seu clamor e prosseguiu: - Tu és inegavelmente fruto da sua vivência e eu sou apenas o produto da vivência que você disse ter. Nunca serei verdade, e também nunca serei mentira, mas serei seu estigma e seu dote; seu dom e sua mazela; sua memória e, ao mesmo tempo, a memória dos homens que me lerem. Viva o hoje que eu trato de viver o ontem.

Sem crer na insanidade da situação da qual estava diante, o homem correu. Correu para a rua e no caminho caiu batendo com a cabeça sobre uma pedra exposta. Eram letras espalhadas pelo chão e escorrendo pelo seu rosto.

No chão ficou escrito: “Querendo que o amanhã fosse hoje é como meu tempo se esvai”.

E então dormiu, no seu tempo.