terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Antes de cada por do sol


A gente meio que nasceu com um pouco de habilidade pra tudo, pra tocar um recital e pra correr uma maratona. Pra dormir sem sonhos por dias ininterruptos ou pra sonhar muito bem acordado. Pra fugir pro outro lado do mundo mas levar consigo os problemas na mala. Pra, ao mesmo tempo, não fugir e ser devorado pela fraqueza da carne quando pulsa pulsa pulsa e se rasga frouxa em pensamento. Pra crescer um pouco todo dia, enquanto se queixa do tédio, do hábito ou do cálice.

A gente meio que nasceu com um pouco de habilidade pra estragar tudo. Pra substituir uma expectativa por outra, o que é quase sempre o caso. Pra esperar dias melhores sem fazer absolutamente nada, o que é também quase sempre o caso. Pra deixar as chances escorregarem entre os dedos com mais frequência do que quando realmente as aproveitamos. Pra se privar do que não deve ser privado.

Não acho que para todo mal há cura. Mas dentre os remédios para os males que têm sim cura, o melhor deles é dormir e sonhar com o braço pressionando seu peito, quase lhe sufocando e quase me machucando. E ainda que seja meio agoniante, é seguro, é conforto. Assim os opostos são como complementos se encontrando em suas versões antagônicas. Paz e guerra, som e silêncio, pele e tatuagem.

Por via das dúvidas, desça do trem e conheça Viena, ou desça as calçadas e conheça Natal mesmo. Ali na praia, ali perto do morro, ali na água rasa, antes de cada por do sol. O crepúsculo é a prova que tanto o pior quanto o melhor dos dias vai ter um fim - e um recomeço.

E ainda bem que é recomeço, pois o que importa é que a gente meio que nasceu com um pouco de sorte pra tudo, seja pra se perder e se achar, ou pra se morrer e se matar.

Isaac N

Inspirado na trilogia de Antes do Amanhecer.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Sobre o abismo e suas iniquidades.


É um animal; é grotesco e frágil, caminhando sobre a corda bamba, está vivo por acidente. Observa a pequena casa construída no topo da montanha, na beira da escarpa, no limiar da lei física, bem além do limiar da lei da natureza do mesmo animal que a construiu. Ela está ali, não por acidente, talvez por circunstância, por capricho, por hipótese, por pura teoria. A gente não raro constrói nossas casas sobre grossos e fortíssimos alicerces de ilusão, paredes espessas de puro concreto de tédio e ódio, teto do mais transparente vidro... Muito mais belo que um lar suntuoso de mentira é qualquer paredinha de adobe, desde que de verdade.

 Mas estava lá o animal, grotesco e frágil, caminhando sobre a corda bamba, vivo porque a sorte o permitira. E observava ainda mais como a pequena casa do topo da montanha tinha um quê de realidade mágica, magnânima. Parecia intocável, impenetrável, desafiante e intransigente. Fulgurava junto às estrelas, dançava junto ao vento, sorria junto à lua e brincava de sumir e surgir toda manhã com a névoa branca, com o orvalho azulado, sorrindo para o condor que nela havia feito morada. Ela era simples, mas era verdade.

Enquanto isso a corda bamba tremia diante da insustentável leveza do animal. Era melhor fechar os olhos para não sentir a vertigem diante de tão perigosa estrutura e tão assombroso abismo. A gente não raro constrói nossas decisões em ideários tão trêmulos, tão fictícios, tão fajutos, e para eles fechamos os olhos como se, por não o vermos, fingimos não existirem... Muito mais belo que simplesmente caminhar o caminho dos outros é criar e seguir o seu próprio, de olhos bem abertos, pois que enquanto ele for verdadeiro, triunfará sobre qualquer corda bamba, será vitorioso sobre qualquer abismo.

E a casa o olhava, lá de cima, estática, despreocupada, destemida, entrincheirada em sua posição gloriosa e firme. É por isso que, para não perecer em precipícios, é fundamental ter raízes. Ao mesmo tempo, é fundamental ser grotesco e frágil para entender que se é. Se é.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Sofri um acidente.

Ontem eu sofri um acidente de trânsito que me deixou machucado. Tá, menos. Eu não estava dentro do carro, tão pouco vi o abalroamento acontecer; ferimentos físicos: nenhum. Entretanto, o que me garante que eu sofri mesmo um acidente, que eu estive lá e que estive machucado por um momento foi o sentimento inconformado e ao mesmo tempo reflexivo que veio lá de dentro, tal qual como a dor física. Veio lá do espírito se é que assim se pode dizer, da alma (por que não?), aquela nossa bateria tão potente e ao mesmo tempo tão fraca.

A gente associa o espírito àquela parcela de vida incorpórea, algo entre o extraordinário e o inexistente. Mas eu acho legal pensar na “alma” ou anima, como queiram, na mais pueril e incrível força que nos movimenta, sem que isso signifique nada sobrenatural ou divino. E essa história tem muito de alma: a minha sendo confrontada, a dos outros sendo eternizada.

Mas, vou guardar um pouco dessa experiência transcendental para daqui a pouco e voltar ao acidente de trânsito e aos hematomas decorrentes do sinistro.

O acidente de fato existiu. Tive prejuízo e tudo mais. O estresse usual, essas angústias cotidianas que nos custam uns muitos dias (ou seriam anos?) de vida lá no juízo final do banco de horas da vida. Angústias mundanas, materialistas, dispensáveis. Mas os hematomas, esses são metafóricos mesmo pois acontecem lá no âmago da alma. Lá dentro os fios desencapados da alma provocaram curtos circuitos, descargas elétricas. Nada como uma dose de realidade pra nos retirar do lugar comum da maneira de ver o mundo, para desencadear conflitos. E para nos inspirar. A dor também inspira.

A mulher que provocou o acidente fugiu sem deixar nota. Bateu e me deixou abatido. Não me deu o direito de ter raiva, pena, compaixão, nada. Eu nem sei se era mulher, mas na minha imaginação eu a vejo dirigindo apressada, dentes cerrados, mãos suando, o vestido preto curtíssimo subindo e ela tentando ajeitá-lo, baixando-o de novo de volta às pernas. A imagem de seu amado vem à mente e ela olha pelo retrovisor para ajeitar o batom. Amassa os lábios e os umidifica, mordendo-os em seguida com um tesão tão reprimido quanto visivelmente explícito. Olha o relógio e vê que está 15 minutos atrasada para o encontro. Um quarto de hora até se entregar ao seu amado. O som estava alto, era Seu Jorge dizendo no ouvido dela: “Foi o seu olhar o que me encantou / quero um pouco mais desse seu amor”... E lá estava ela, sofrendo de paixão aguda em grau terminal, desenganada pelos médicos, pais de santo e roteiristas de novela quando de repente BAM. Na minha imaginação ela bateu e fugiu porque iria reencontrar o objeto de seu desejo e seu desejo infelizmente não permitia obstáculos ou condições. Só o amor salva, só o amor eterniza e ela está a salvo porque ama. Sendo assim, vá!

Aí eu escrevi, no calor do momento, que nunca é tarde pra começar a desacreditar na humanidade. Não podia estar mais errado. Ora, eu provavelmente fui o responsável por subtrair daquela motorista incauta alguns minutos longe do seu amor. Ela não tem porque me pedir desculpas, a ela está permitido ir sem me dar explicações, ainda que eu esteja com uma bela de uma conta na oficina para pagar. A dor também suspira.

Talvez seja por isso que eu goste de escrever, para poder me confrontar. Sério, às vezes eu gosto de provar que estou certo com base no meu parco conhecimento de mundo, nas experiências e leituras que a vida me proporcionou até agora. Mas o que eu gosto mesmo é quando alguém me prova o seu contrário. Quando me convencem que eu estou errado, que eu sempre estive errado e que o que eu escrevi estava tão errado mas tão errado, que podia ser matéria de capa da Veja.

E os hematomas, ah... esses já viraram poesia, pois tenho quase certeza que essa meliante era extremamente linda.

domingo, 12 de maio de 2013

Poeira Estelar



Poeira estelar. E não é que ele tinha razão? Somos mesmo poeira estelar, em física e em metafísica. Perdão pela assertividade com que digo, mas eu sempre soube ser e quis ser poeira. Ser pó, ser sujeira do balcão que fica grudada na pele do último bêbado abandonado; pó molhado de suor, água, álcool...

Gosto de ser pó da maquiagem que fica na manhã seguinte, na minha barba, na minha boca e no meu pensamento, igualmente sujo, como tudo o é. Sujo como o prazer, que é egoísta e invejoso, que exige mais e mais de si, ou não se lembra de como tudo tremia ao mínimo toque, ao pensamento ou lembrança? Tudo era memória ou até mesmo fantasia, ideia, imaginação de um momento que pode ou não ter existido. Prazer é egoísmo que define e definha.

Gosto de ser poeira do meu quarto, pois, dentro dele, ela e eu clamamos pelo caos, escalamos as paredes, trememos na utopia, vivemos em Nirvana e cedemos juntos na lentidão agoniada e grunge das horas, cadentes por excelência e desarmoniosas por opção.

Gosto de ser pó na insanidade da agitação, de ser impulso frenético que pulsa pulsa PULSA!

Sou partícula, enfim. Elemento e parte, produto das estrelas, sou tudo e sou nada. O que é lá de cima, do inalcançável e do transcendental é também daqui de baixo, terreno e mundano, perverso.

Por isso, na minha humilde opinião de poeira estelar, não existem distâncias tampouco instâncias para se viver em excesso ou em déficit. Nós simplesmente somos um, bem verbo intransitivo assim. Bem intransigente assim.

(Ah, Freud, essa não é uma sessão de psicanálise).

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Carta a um Perdido



Natal, 14 de janeiro de 2013

Caro EU perdido,

Onde está você, Parte de mim? Quando saiu daqui, pelo menos da última vez que te vi subindo os degraus com aquela mochila azul maltrapilha, eu senti que não mais te veria. Senti que a sua decisão de entrar naquela estação para ver outra paisagem iria lhe escurecer o cabelo que outrora foi tão iluminado quanto teu sorriso, iria lhe deixar borrado em cores de aquarela cinza. Ainda lembro que você sabia falar mas não era a língua dos outros. Era só a sua língua, sua saliva, seu nome tudo em verdadeira profusão e catarse. Era uma candura transparente que provocava reflexos de labirintite, que arrancava sorrisos, se desmantelava em espasmos de sabor, se esparramava nas impulsividades e impossibilidades ainda que sempre ressurgisse fulgurante no calor das nossas cidades inabitadas, no quente do teu ouvido, na agonia da respiração que é igual a você, foge da traqueia e se perde antes de se encontrar, antes de encontrar seus alvéolos. Fostes nada mais que apneia, que delira e mata.

E perdido ainda continua. Não posso negar, sinto falta do seu - inspira forte e rápido agora...: vontade gestos alegria dislexia furor coragem sonho você é um garoto sonhador calor calor calor... – expira lento e resignado agora: sua incapacidade de assumir suas decisões e lidar com os resultados de suas ações é o seu maior crime ponto final.

De onde eu me sento agora, nessa sobrevida que só persiste com o auxílio de aparelhos, eu só vejo os seus rastros, os seus restos, o seu suor em todos os cantos dessa sala. Seus últimos cartões postais são uma ode ao que nunca existiu.

Pensando bem, Parte de mim, se for para cometer os mesmos erros, é melhor continuar perdido, é melhor emergir e respirar do que viver de falta de ar. Não quero me ver tão belo quanto sujo.

Você é uma constipação de desejos, é Sintoma.

Isaac Queiroz