segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Sobre Felinos



No dia em que ela bebeu, virou uma heroína. Podia até não concordar com todos os seus atos, mas isso não diminui minha concepção de que seu feito tinha sido honroso. Ora, não é sempre que a gente assiste a um coração ser pisoteado sem poder muita coisa fazer, como naquela cena clássica de um estouro de manada de gnus da savana em que a crueldade e a falta de amor pisam mais sobre o leão abatido que os cascos que lhe esmagam sob o calor do sol cintilante. O coração tem dessas coisas, dessas cenas idílicas de dor e tortura. Já dizia Chico César: eu sei como pisar no coração de uma mulher, já fui mulher eu sei, já fui mulher eu sei.

Eu já fui mulher e sei. Na verdade acho que todos nós já fomos mulheres e sabemos, mas asseguro que nem todos fomos fortes como ela. É mesmo difícil ser mulher, ainda mais naquela noite em que ela bebeu, quando seu coração feminino batia mais forte justamente por alguém que não a queria como ela o queria. E ela não se importava com isso, porque todo heroi é por natureza um sonhador; para ele revolução e café se fazem todo dia. Utopia é sim realidade. E não era um simples querer não correspondido que iria demovê-la de seu objetivo micro homérico: insistir no seu desejo ainda que todos lhe dissessem que não, tudo permitisse que não, tudo se alcançasse com o não.

Então ela se embriagou de álcool para concluir que sempre estivera embriagada de amor. O mesmo amor que sempre a tornou tão especial, tão única. Mesmo as piores decisões da sua vida ela sempre havia tomado com um bocadinho desse tempero, o tempo de suas escolhas impulsivas sempre foi o tempo do seu julgamento completamente impregnado de emoção, não que isso signifique que fosse desarrazoada ou injusta. Pelo contrário. Seu temperamento tinha aquele quê ingênuo genuíno de Macabea que perfeitamente coabitava com a sagacidade irremediável e a veia modernista de madame Bovary. Era uma felina atacada, sempre consolada com afagos e carinhos dos seus gatos que a amavam e desamavam.

Sempre havia contornado as dificuldades de sua vida com um sorriso transformador. Era séria, mas não sabia ser severa. Era sóbria, mas não sabia ser rude. Eu tenho bastante propriedade para falar dela pois já fui – e ainda sou – desses gatos pidões que ela acaricia com seu sorriso.

Uma vez nós viajamos juntos, quando ambos ainda éramos gatos. Eu ia em busca de uma utopia, queria fazer revoluções, muito embora ela me alertasse que minha causa já havia nascido perdida. Ela nunca classificou as pessoas pelo seu heroísmo, mas identificava claramente quando uma batalha estava perdida e quando ser herói passava a ser nada mais que estupidez. E se eu a tivesse escutado, teria me poupado de entrar naquela batalha perdida e de me lançar em uma guerra ainda mais cruel. De qualquer maneira, suas palavras de conselho sempre sararam minhas feridas. Voltei daquela viagem menos felino e mais humano por culpa dela e das circunstâncias. Acho que a dor é causa e efeito, objetivo e resultado dessas transformações que a gente passa na vida.

E foi assim que ela virou doses e mais doses para criar coragem de encontrar aquele que amava desde há muito tempo atrás. A última vez que o tinha visto havia sido desastroso e agora nada indicava que seria diferente. Não se engane, ela sabe o que é sossego e o sufoco de ter alguém para acompanhar.

E nesse arroubo de coragem ela foi, ela brigou, ela chorou. Não se calou, não se conteve, foi honesta consigo como talvez nunca houvesse sido. Seu incurável amor, pisoteado, não a impediu também de ser humana, porque isso também é ser mulher – eu sei. Seu gesto heroico foi sobreviver ao amor que tanto lhe fazia bem, mas que tanto lhe machucava. Seu sorriso foi como o sol nascendo no dia seguinte, quando eu a abracei e vi que suas feridas já estavam sendo saradas; que ela agora era menos felina.


Por isso eu olho para ela e acredito que é mesmo preciso de uma boa dose de dor pra se continuar seguindo na vida. É preciso de uma boa dose para nos transformarmos no que quisermos ser em paz.