terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Fuga.

É na fuga da rotina que me tens por inteiro. É na ignorância da rotina que eu me esquivo e, enquanto a despisto, mergulho no mar que é de corpo e de cobertor, de braço e de abraço. Corro rápido para perto dos olhos dormentes que são a beira do mar e porta do universo e lá dentro me afundo mesmo, me refestelo de liberdade; liberto do despertar, dos despertadores e de suas horas, minutos, segundos, terceiros... 

A agonia de logo mergulhar dita toda a minha pressa. Não desate os nós desses cadarços pois eles se enlaçam e desenlaçam com a rotina e rotina é norma. Ela é o calçado que impede de sentir o chão, de apertar a terra fria por entre os dedos, de ser o mar em que mergulho. Deixe que eu arranco com meus dedos do pé essa meia, não vamos perder tempo com processos infalíveis e programados. Não vamos seguir padrões, não deixe o sol se esconder, não desligue a luz, não pare de dançar. Não resolva agora todos os seus problemas, tão pouco queira saber dos meus, porque a gente está tratando aqui de sonhos e a rotina é inimiga da minha pressa.

Deixe-me contemplar o barulho do mar que vem de dentro dos olhos enquanto sonho com a próxima fuga em que me terás por inteiro. E, por fim, quando for inevitável abraçá-la, é melhor pensar que até mesmo o trem que irrompe das montanhas também abraça os seus trilhos, a sua rotina. Que até o avião, esse danado, depende do chão para poder flutuar.


quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 6)

Confesso que foi difícil atender um telefonema tão enigmático, tão cheio de significações. Ora que coisa, tinha que ser um dia depois do aniversário de nosso encontro? Tinha que ser na hora em que a borboleta mais curiosa pousava na flor mais próxima de mim dentre todas as outras borboletas e flores do planeta? Tinha que me inevitavelmente fazer lembrar do dia em que recebi outra ligação, dessa vez a que me separaria para sempre daqueles olhos de pérola negra que daquele dia em diante voltariam a ser estrelas? 

Eu queria ter tido um só dia, que fosse uma só chance para conversar com ela, que fosse até por telefone. Só bastava um minuto. Depois que ela me ensinou o que significava a vida, agora me ensinaria o que significava a morte. Poderíamos relembrar as histórias, riríamos das desgraças como sempre fazíamos e, no fim, ela me diria se em algum universo paralelo elas terminaram de maneira diferente. 

Mas de que adianta o querer se não existe tal coisa como a realização? Acho que é por isso que não entendemos a morte, pois se alcançássemos esse objetivo, este já deixaria de sê-lo e não teríamos mais para onde partir. Do vazio ao vazio, esse é o caminho que percorremos. Do verão ao verão, do chão ao chão, do pó ao pó. Das estrelas às estrelas.

E por falar em estrelas, o sol deu uma pequena trégua e resolveu se esconder por um pequeno instante, o suficiente para interromper o repouso da pequena borboleta nas flores que Seu Abel tinha colocado na varanda. Olhou para mim, bateu levemente suas asas e, no intervalo de um piscar de olhos, se foi do vento para o vento. 

Em uma das esquinas dessa ou de outras existências eu tenho certeza que seu sorriso amarelo e seu sotaque português ainda caminham por aí de braços dados com a alegria e a histeria sua e de seus amigos.