segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

À deriva.

João nasceu em julho. Desse fato não há muito que se falar: ele simplesmente nasceu. Sua mãe talvez tenha algo a acrescentar ao ocorrido, possa dar detalhes do choro, da dor, do cheiro de talco e roupa limpa e das costas doídas depois de meses de uma coluna envergada por um bebê que nunca parava de engordar. Mas o fato foi que João veio ao mundo e pronto. Um bebê.

Ainda pequeno, quando o poder de escolha e das consequências dos seus atos estava basicamente concentrado na mão de outra pessoa, sua mãe teve que escolher entre A e B, sendo A ir atrás do amor da sua vida, o pai de João, itinerando pelos interiores de sua alma e de sua terra, bem longe de quem ela tanto queria bem, e B desistir de tudo, trafegando pelo campo calmo que é a paz e o conforto das nossas zonas.

Em resumo rápido - pois não vim aqui falar da mãe de João senão do próprio - ela decidiu pelo plano A e seguiu o pai de seu filho pelas suas viagens. João também sofreu as consequências da decisão de sua mãe, afinal era um mero navegante à deriva de uma tempestade, ao sabor do destino e do vento, daquele amor complicado. Até hoje eles, os pais, estão juntos, não sem dificuldade. Não significa que ''até hoje estar junto'' seja a glória e o único desejo de toda relação. Todo mundo sabe que uma história é muita tosse, café frio, boleto, imposto, me dê a senha do seu celular, quem é essa Marcela no seu instagram, sua mãe não tem noção, seu pai é pior, aquele corno do seu primo, você parece que come cocô pra falar um negócio desses, você que deve ser muito burro pra não entender, vamos fazer as pazes, vamos, mas eu só falo com voz de bebê agora, tá certu bebezão.

E aí dentre os mil dias que começam sem um bom dia carinhoso e terminam em um beijo com sabor de pasta de dente, tem aqueles que você se sente a pessoa mais especial do mundo, aquele em que um passa numa prova desejada, aquele outro em que você chega em casa e tem uma cama coberta de pétala de rosas, aquele em que rola um sexo proibido na praia nem tão deserta assim. Aquele dia em que tudo estava dando errado, em que os boletos entupiram a caixa e que ambos gastam o resto do dinheiro do mês numa coisa bem extravagante e utilmente desnecessária.

Mas e se a mãe de João tivesse escolhido B, deus sabe onde João estaria agora. Poderia João ser rico, ou ser pobre, estar vivo ou estar morto. Estar casado ou solteiro, com dois filhos ou sem nenhum. Podia ter escolhido se mudar para o nordeste e se encantado com a praia e os golfinhos, vender a arte ou planejar ataques a banco. Podia ter assistido à chuva de meteoros passar no céu estrelado de um janeiro solitário em sua casa ou podia estar comendo peixe e tapioca com uma família numerosa. Enfim, deu para entender que tem escolhas que João não faz, mas que mesmo assim vão definir um bom pedaço do rumo dele.

Acontece que João hoje é dono do seu nariz, ele é quem ele é em boa parte porque as escolhas feitas por sua mãe o trouxeram até aqui. Um menino bom, um rapaz atencioso e que cuida do cabelo, mas desse fato não há muito que se falar: ele simplesmente cresceu.

E agora, pressupondo que as decisões de sua mãe sobre A ou sobre B não vão mais impactar tanto na sua trajetória, eis que aquele bebê nascido em julho, que acompanhou todas as tosses e cafés gelados de seus pais, tem diante de si duas opções: A e B, sendo A ir atrás do amor da sua vida, itinerante pelos interiores de sua alma e de sua terra, bem longe de quem ele tanto queria bem, e B desistir de tudo, trafegar pelo campo calmo que é a paz e o conforto das nossas zonas.

Todo dia é dia de tomar decisões. Todo A pode levar a um caminho que pode ser a solidão no meio da multidão e B a alegria de se sentir pleno no vale onde alma alguma habita. Tem outros Joãos e outras Marias que vão sentir o impacto dessa decisão, mas a essa altura, assim como foi com a mãe, o pai, e todos os outros milhões de seres que simplesmente escolhem todos os dias, ninguém pode fazer isso por ele.

Eis a dor e a beleza de sermos navegantes à deriva nesse mar bravio que é a vida.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Pequenos suicídios

Cora Coralina disse uma vez que é preciso que alguém reveja, escreva e assine os autos do passado antes que alguém leve tudo a raso. Que sabedoria a dessa mulher, não? Ouso dizer que até mesmo as tragédias têm um lirismo perfeito: a minha dor me é tão cara que eu posso viver sem um braço, mas não sem ela. Seja em matéria de grandes feitos ou de pequenos martírios, o passado é mais que direito: é essência do que somos formados, rocha de nosso chão ou basicamente o que nos separa de um pedaço de carne que só anda e fala.

Autores, revisores e leitores assíduos desse nosso pequeno sopro chamado existência, escrito todo dia no papel da inexorável marcha do tempo. Nós somos também pilotos desse corpo e a nós nos compete tomar o rumo: um caminho que não só tem um fim certo, mas também uma única chance de ser bem percorrido, afinal todo segundo que se vive é o último e o único ao qual somos obrigados.

E essa história, o passado, é feita todo o tempo, se morrendo para se viver; são pequenos suicídios que a gente comete para corrigir os rumos, retomar as rédeas de si, every single day. Doses diárias de coragem são necessárias para que o eu seja sempre eu e não qualquer outro errante perdido por aí. Doses tão fortes que parte de nós vai junto com as decisões: em matéria de vícios, relacionamentos e empregos, é preciso deixar morrer certas coisas antes que elas te morram.

Sou meu passado, mas sou ainda mais meu futuro. Ora, todo santo dia é o dia para fazer o maravilhoso acontecer. Todo santo dia é o momento de se obrigar a não fazer nada menos que o maravilhoso de nossas vidas e, por consequência, da vida dos outros que nos cercam e ainda das que podemos tocar com nossos atos. Vejamos, escrevamos e assinemos nossas histórias com orgulho de tê-las feito da melhor maneira que pudemos em cada pequena ou grande decisão. Que o arrependimento e o perdão sejam os ensinamentos necessários para melhorar essa escrita a cada nova página, a cada nova obra.

É bom lembrar que toda história tem um único fim, mas a beleza que existe no meio é culpa da cor da tinta e da habilidade do pintor. Quem não faz isso, não decide o que é o melhor para sua história a cada segundo, é melhor logo se considerar um pedaço de carne que só anda e fala. Isso vale desde o dia em que se nasce ao dia em que se vai de vez.

Olhos de alvorada

Eu não sei o que tem nesses olhos que vivem com sono
sem jeito e sem dono
Sem ideia da força que têm        

Eles são a quimera escandalosa
São ao mesmo tempo prisão e alforria
Nas auroras mais silenciosas
São denúncia de que amanheceu o dia

São becos, frestas, vielas
Esses olhos são asilo
Para onde correm os outros sentidos
E onde se escondem os fugitivos.

Eu não sei o que tem nesses olhos que vivem com fome
sem jeito e sem nome
Sem ideia da beleza que têm     

Que me fazem lembrar o nascer do sol na pele queimando
Sem a correria do perfeito plano
Esses olhos têm um jeito gostoso de me fazer bem.

Janeiro de 2014.