domingo, 29 de maio de 2011

Olhos de Fogo / Desilusão

Olhos de fogo

Os olhos de Michel e Adriana cruzaram-se finalmente no Café Budapeste naquele fim de tarde chuvoso típico nos meses de maio, ressabiado pelos gritos da avenida movimentada, barulhenta e parcialmente alagada pela intermitente precipitação. Do lado de dentro, via-se através do vidro já embaçado a dificuldade dos transeuntes ao tentar cruzar a rua, alguns haviam desistido de impedir a enxurrada deixada pelos carros que passavam em maior velocidade e outros se esforçavam para continuar o passo naquela calçada encharcada.

A fumaça saía da cozinha frenética, os passos apressados dos garçons com canetas na boca, na orelha e papéis em todos os bolsos, o constante vai-e-vem de clientes afobados pela loucura do mundo exterior, tudo isso contrastava com a pequena cabina silenciosa que eles escolheram para dividir um capuccino. Lá dentro, no primeiro andar, Michel fulminava os olhos de Adriana como se pusessem fogo em todo o ambiente, como se o calor do café fosse brisa gelada diante daquela temperatura absurda que se transmitia no olhar. Olhos que queimavam o choro sincero de saudade, que clareavam a embriaguez do dia anterior, que viciava o ar e que por ele era viciado. Para ela, ardia naquele olhar o desejo velado, mas febril, de corrupção.

Eles, que costumavam ser inseparáveis no passado, passaram anos sem se ver: Michel, rabugento como ninguém, havia decidido ser roteirista de peças de teatro, talvez para poder transfigurar para a ficção um pouco dos seus dramas e comoções tão imensas e tão urgentes quanto fugazes. Pouco necessário dizer que estava no auge da crise de meia-idade, onde suas manias pareciam cada vez menos necessárias e lógicas. Ela, muito nova ainda – e bem mais nova que ele – tinha acabado de chegar de uma temporada na Arábia Saudita, onde havia sido contratada como engenheira de uma multinacional. Notava-se que ainda estava pouco acostumada com o ar libertino que inspirava aquela cidade, e só de estar diante de sua antiga paixão de adolescência aceitando o risco - pouco provável, a seu ver - de trair seu marido, já vencera uma grande disputa interna que ela havia travado consigo desde o momento em que chegara de viagem até o dia em que decidiu convidá-lo para esse café.

Ele lustrava suas conquistas com ar de autoridade, exibia o seu rosto marcado pelo tempo, com a convicção de um sábio, até mesmo chegando a intimidá-la em certos momentos dada a incrível segurança que transparecia de suas palavras e gestos. Ela discriminava seus álbuns e vestidos comprados no exterior, e afirmava que as benesses da burguesia eram “supérfluas”, coisas efêmeras diante da sua recente primavera cultural (como ela gostava de denominar o recente hábito de ampliar seus horizontes artísticos através da fotografia). Mais que isso, ela tentava de toda forma desviar-se daquele olhar fulgurante, daquelas duas fontes negras de calor que em si provocavam uma atração quase irresistível.

Na verdade, Adriana não conseguia suportar sua fragilidade diante daquele homem. Ela se punia por não conseguir parar de tremer ao menor toque da mão do Michel, esbarrões esses exclusivamente acidentais. E não aguentava a ideia de que não seria capaz de dizer um não para ele, por mais esdrúxulo e impossível que fosse o pedido. Suava em bicas a cada penetração daquele olhar de raio laser e tentava desviar seu desejo transparente em notas sobre política e teatro, ao passo em que mostrava para ele suas fotos no deserto, torcendo sempre por outro toque inesperado.

Michel parecia sentir falta da companhia de Adriana, mas suas convicções de relacionamentos interpessoais adquiridos dos últimos sete namoros consecutivos fracassados o cegava e o impedia de perceber que a vontade dela era resgatar a jovialidade do passado, quando aqueles olhos podiam derretê-la em uma fração de segundo. Além do mais, estava em uma fase de total abnegação em interesses humanos; aparentemente havia algo que o tirava da realidade, de tão envolvido que estava em suas peças conhecidas por serem sorumbáticas e extremamente cruéis.

Desilusão

Aquele momento de intensidade foi interrompido pelo celular dela. Era sua filha que estava esperando na escola, a poucos metros dali. Pediram imediatamente a conta, ela pagou. Ela deu-lhe um cartão com seu número pessoal e combinaram de qualquer dia marcarem outro encontro. Despediram-se.

Adriana abriu seu guarda-chuva, saiu do Café Budapeste e foi com cuidado pisando no chão escorregadio até a porta do seu carro.

Deu tempo de ver pelo vidro quando ele rasgou seu cartão e acendeu um cigarro, cruzando a rua e desaparecendo na esquina à frente.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Dicas de um velho moribundo.



Algo que pode ser escrito daqui a duas décadas, ou há duas horas atrás.

Dica número 1:

Euforia é uma coisa asquerosa para quem a vê de fora.
Nada mais chato do que uma vida de poucos fracassos.

Dica número 2:

Um brinde à grande ilusão do amor.
Outro brinde aos que já se embriagam de ilusão.
Ofereço aos tolos que procuram o eu no outro.
E aos que não suportam a solidão.

Dica número 3:

Esnobe com dinheiro mas nao esnobe com amor.
Nós, não amantes, não precisamos saber do seu amor.
Isso só nos torna mais resignados.

Dica número 4:

Tire esse sorriso do meu caminho
Porque sim.
Tire o seu caminho do meu sorriso
Por que não?

Conclusão:

Há sonho demais, esperança demais, vontade demais
E há também a coragem que nos falta.
A hipocrisia que nos cerca.
E a mentira que nos mata.

Isaac N

Estou escrevendo. Passe amanhã

Beleza na tragédia.

Podíamos propor um trato com a natureza. De tempos em tempos ela colocaria uma provação aos homens para que eles se lembrassem da sua infinita e incomunal pequenez. Seria belo senão trágico; se já não fosse verdade.


Continuo...

Sob um ponto de vista conceitual esquema-intelecto, o homem é o menor ser humano que existe.

E, considerando que o mundo está lotado de pessoas pequenas, concluo que quero morrer cedo; é tempo demais para se perder com pessoas de menos.

Está é a minha bravata.
O meu arroubo de ira.
O meu verso sabor de fel.
A verdade que também é uma mentira.

Isaac N

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Doce de coração amargo.

 Uma dose de descontente
Alguns punhados de dor
Desejo mexido e estralado
Faço meu próprio desamor
(Com cheiro de passado)
 
Bons sonhos são bem vindos
Em noites de pouco e raro sono
Requentar memórias e sinestesias
Em dias de ilusão e desengano
(Com sabor de alegria)
 
Extraindo poesia da amargura
Agrura, azia, avarias
Tornando-as em amarula
Azuis, Amarelas, aquarelas
(De texturas variadas)
 
É como a receita começa e acaba
É como se adoece, sem afago
O açúcar pode não fazer bem
Mas faz doce de coração amargo
(Ao som de Belle e Sebastian)
 
Isaac N