terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Fuga.

É na fuga da rotina que me tens por inteiro. É na ignorância da rotina que eu me esquivo e, enquanto a despisto, mergulho no mar que é de corpo e de cobertor, de braço e de abraço. Corro rápido para perto dos olhos dormentes que são a beira do mar e porta do universo e lá dentro me afundo mesmo, me refestelo de liberdade; liberto do despertar, dos despertadores e de suas horas, minutos, segundos, terceiros... 

A agonia de logo mergulhar dita toda a minha pressa. Não desate os nós desses cadarços pois eles se enlaçam e desenlaçam com a rotina e rotina é norma. Ela é o calçado que impede de sentir o chão, de apertar a terra fria por entre os dedos, de ser o mar em que mergulho. Deixe que eu arranco com meus dedos do pé essa meia, não vamos perder tempo com processos infalíveis e programados. Não vamos seguir padrões, não deixe o sol se esconder, não desligue a luz, não pare de dançar. Não resolva agora todos os seus problemas, tão pouco queira saber dos meus, porque a gente está tratando aqui de sonhos e a rotina é inimiga da minha pressa.

Deixe-me contemplar o barulho do mar que vem de dentro dos olhos enquanto sonho com a próxima fuga em que me terás por inteiro. E, por fim, quando for inevitável abraçá-la, é melhor pensar que até mesmo o trem que irrompe das montanhas também abraça os seus trilhos, a sua rotina. Que até o avião, esse danado, depende do chão para poder flutuar.


quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 6)

Confesso que foi difícil atender um telefonema tão enigmático, tão cheio de significações. Ora que coisa, tinha que ser um dia depois do aniversário de nosso encontro? Tinha que ser na hora em que a borboleta mais curiosa pousava na flor mais próxima de mim dentre todas as outras borboletas e flores do planeta? Tinha que me inevitavelmente fazer lembrar do dia em que recebi outra ligação, dessa vez a que me separaria para sempre daqueles olhos de pérola negra que daquele dia em diante voltariam a ser estrelas? 

Eu queria ter tido um só dia, que fosse uma só chance para conversar com ela, que fosse até por telefone. Só bastava um minuto. Depois que ela me ensinou o que significava a vida, agora me ensinaria o que significava a morte. Poderíamos relembrar as histórias, riríamos das desgraças como sempre fazíamos e, no fim, ela me diria se em algum universo paralelo elas terminaram de maneira diferente. 

Mas de que adianta o querer se não existe tal coisa como a realização? Acho que é por isso que não entendemos a morte, pois se alcançássemos esse objetivo, este já deixaria de sê-lo e não teríamos mais para onde partir. Do vazio ao vazio, esse é o caminho que percorremos. Do verão ao verão, do chão ao chão, do pó ao pó. Das estrelas às estrelas.

E por falar em estrelas, o sol deu uma pequena trégua e resolveu se esconder por um pequeno instante, o suficiente para interromper o repouso da pequena borboleta nas flores que Seu Abel tinha colocado na varanda. Olhou para mim, bateu levemente suas asas e, no intervalo de um piscar de olhos, se foi do vento para o vento. 

Em uma das esquinas dessa ou de outras existências eu tenho certeza que seu sorriso amarelo e seu sotaque português ainda caminham por aí de braços dados com a alegria e a histeria sua e de seus amigos.




segunda-feira, 24 de novembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 5)

Você tem que confessar junto comigo que receber a ligação do número de alguém que já morreu é, no mínimo, desconcertante. Tudo bem, é plausível que o receptor de uma chamada dessas se dê conta um ou dois segundos depois do choque que um número é só um número e uma pessoa é só uma pessoa. Pessoas não são números, muito embora a gente (in)conscientemente designe algarismos para contar os eventos que impactam as vidas únicas, singulares e de valores imensuráveis de cada um de nós. Inclusive fiz isso quando acordei e me senti mais tranquilo só por realizar que estava aqui, nesse hemisfério, nessa cidade quente, nesse coletivo insano de sanidades irreais e fabricadas onde lobos e loucos se confundem cara a cara.

Uma coisa me dá certeza que estamos numa matilha faminta onde tudo e nada se justificam: a efêmera existência. A justiça que nós inventamos não passa de mera tentativa de acomodação das mútuas realidades, da minha, da sua, por exemplo. Seu Abel não gosta do argentino e, para ele, a existência daquele outro é irrelevante. Entretanto, para o universo, os dois são mais efêmeros que um sopro de vento. E pelo jeito que as coisas andam, sopros de vento carregando o som de nossas agonias e angústias serão tudo que restarão nesse teatro em chamas do qual hoje corremos afobados procurando saída, mas que cujas portas estão trancadas. Estamos todos sufocando na peça da vida mimetizada em poluição, em violência, em desamor.

E Lara era a foice e o martelo da oposição a isso tudo. A sua morte prematura e inesperada foi o significado maior que não vivemos em um mundo cujas bases são "justas", senão apenas fisicamente equilibradas. Não existem balanças no nosso pequeno planeta humano, só foices e martelos. Ela se foi depois de sofrer as complicações de uma cirurgia simples após um acidente banal de motocicleta. É tudo tão efêmero, foi tudo tão absurdo e tão clinicamente elaborado pelo acaso. Não venham me dizer que foi obra de algum ente superior escrevendo certo por linhas tortas porque isso definitivamente não é verdade.

Em seu pequeno plano individual, a tudo e a todos Lara deslumbrava de tanto amor. Deslumbrante, esse é o termo ideal para representá-la. Melhor que falar de seus olhos negros, de sua composição magmática, de sua semelhança com as borboletas, é apenas lembrar de seu caráter deslumbrante, que, na verdade, é o adjetivo que iguala todas as suas metáforas. 

Nós não precisamos ser números que contabilizem sete bilhões de atores e plateia queimando seus papeis enquanto enlouquecem com o sobe e desce da bolsa de valores; nós não precisamos ter a certeza relembrada a todo momento que moramos no pior lugar do mundo, independente de onde ele seja.

Nós precisamos mesmo é de desconstruir todas as portas fechadas desse teatro chamuscante, edificado meticulosamente por séculos de opressão. Deixar de ser números, de sermos as numerosas vítimas de homicídios, de sermos a maioria da população que não ganha o mesmo que a minoria por havermos nascido mulher, de sermos um povo aviltado de direitos pelo ódio do preconceito e pelo carma da escravidão, de sermos abnegados de posições e direitos pelas diferentes silhuetas... de sermos mais efêmeros que o vento. A gente precisa mesmo é de mais pessoas e menos números. A gente precisa que todos sejam encharcados de amor em todas as suas formas.

E pensando nisso tudo é que a ideia de atender a ligação que logo soube ser da irmã de Lara, naquele instante, onde minha mente fecundara em arremedos de filosofia barata e fundira pelo calor do sol - e do momento -, me soou no mínimo desconcertante. Ela queria se encontrar comigo pois havia chegado de viagem e tinha saudade dos amigos que deixara aqui em Natal, amizades cuja fundação fora sedimentada pelo intermédio da irmã.



quinta-feira, 20 de novembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 4)

Então foi tudo nessa ordem: Seu Abel, flor, whisky, ressaca, sol, borboleta, jornal, telefonema e, por último, eu mesmo, apenas mais um elemento nessa provável ou improvável sequência de eventos aleatórios que só fazem algum sentido se eu conseguir contar um pouco do que se passou antes que eu atenda a fatídica ligação.

Lara foi uma joia na terra. Não era uma pedra preciosa ou um metal nobre, mas uma rara pedra vulcânica, pois que lapidada pelo vento e pelo mar que separa os continentes. Pedra da cor de seus olhos negros porque sua constituição era de ebulição, de transformação; magmática e enigmática. Leve, flutuava sobre qualquer subjetividade superficial que ousasse determinar sua ligação com qualquer pedaço de chão... para Lara, éramos qualquer coisa do próprio e de vários chãos, fossem eles azulejos portugueses, leitos de rios guineenses, asfaltos paulistanos ou mesmo o salitre daquelas paredes e pessoas corroídas de Natal.

Como toda boa joia, seu valor alto sempre despertou cobiça. Era disputada acirradamente por todos os seus amigos antigos e pelos novos também, para os quais ela escrevia formulários para verificar a afinidade em temas essenciais como: sabor preferido de terra, combinação de roupas e acessórios para usar no caso de eventos apocalípticos, impactos de asteroide, invasões alienígenas... além disso tinha os ensaios caseiros para a dublagem do especial de natal da rede globo em quatro ou mais línguas.

Não conseguia conter sua histeria nem mesmo quando decidiu, motivada por uma aposta com um amigo, virar vegetariana. Continuou frequentando o macdonalds e era motivo de risada quando pedia seus sanduiches sem hamburguer. Gostava de se denominar como borboleta, talvez pela metamorfose de si e de suas decisões, mas também porque podia voar.

A dificuldade de adaptar-se à normalidade refletia-se, por paradoxo, em uma exímia capacidade de analisá-la. Enxergava do alto os acontecimentos e os diagnosticava com precisão. Não foi à toa que escolhera ser psicóloga; não foi à toa que me ensinara a olhar o mundo com aqueles olhos que pareciam miniaturas de seu universo particular, absortos pela natureza e por sua complexa simplicidade. Por suas asas de borboleta eu voei e vi, junto com ela, que a existência tinha sim limites, mas o mundo não.

Seus insanos planos de dominar o mundo sobre uma lambreta com seu pato de estimação na garupa acabaram por ser seu acaso fatal. Frankly my dear, she didn't give a damn. O vento a levou para longe, para lá de onde minhas rosas brancas possam exalar seu cheiro para relembrá-la. Mas trouxe-a para mim naquela manhã ensolarada, quando seu número aparecia no display do meu celular.

Atendi. Era sua irmã que havia chegado de viagem para passar alguns meses e queria me encontrar.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 3)

Aquela era uma manhã de segunda-feira. O dia anterior fora de comemoração, havia saído com uns amigos para beber em uma praça perto de casa para celebrar o aniversário de um deles. Todos os anos eu me dou esse dia de embriaguez tanto pelo motivo explícito que é o aniversário desse amigo quanto pelo velado, que é a data em que conheci a pessoa que mudou a minha vida.

Antes de sair do seu expediente do domingo, Seu Abel me encontrou no saguão do condomínio. Ele é um senhor daqueles bem cara-de-vô, esguio, cabelo grisalho, armação de metal nos óculos que ainda levavam um durex na extremidade para remendar a perna quebrada e uma lente fundo-de-garrafa que destacava ou escondia o olho verde claro e as olheiras de alguém que já trabalhou muito. Sempre supus que as lentes que ele usava para enxergar a vida tinham uma finalidade adicional, a de se privar de ser enxergado. Parecia até uma barreira que impedia qualquer aproximação, talvez por isso eu soubesse muito pouco ou quase nada sobre sua história.

Seu Abel conhecia todos os 80 condôminos do prédio, suas famílias, visitas desejáveis, indesejáveis e aquelas mais furtivas também. Ele era tão esperto que, com desfaçatez, conseguia fingir perfeitamente uma surdez sempre que lhe era conveniente, especialmente quando era questionado por algum morador sobre o motivo de ser apanhado com o ouvido encostado na porta do apartamento ao detectar o primeiro sinal de uma discussão mais acalorada lá dentro. Aquele meu vizinho, o argentino apreciador de charutos, detestava-o justamente porque, dentre a série de palavras em espanhol que havia decorado de tanto bisbilhotar as discussões dentro do apartamento do portenho, a única que ele fazia questão de repetir sempre que fosse possível ser ouvida pelo morador era 'maricón'.

No domingo, Seu Abel me parou quando eu estava de saída para o aniversário para me contar que o condomínio estava doando mudas de plantas e rosas. Perguntou se eu não queria uma muda de Cambará pois eu levava um pequeno ramalhete de flores brancas na mão direita e um litro de whisky na esquerda. Olhei para ele disse que sim, que se pudesse, deixasse algumas dentro de um vaso que havia na varanda e para a qual ele tinha acesso independente de minha presença.

Até tinha esquecido como aquelas flores tinham chegado ali quando abri a cortina e olhei o vaso repleto daquela enormidade de pequenos botões rosa clareadas pela luz do sol. Cambarás são ótimas para atrair borboletas e, talvez por isso ou pelo acaso, havia uma bem grande pousada bem no meio do pequeno arbusto, batendo as asas lentamente, como que se me encarasse, como que se me conhecesse.

Pouco depois desse momento de contemplação mútua, ela voou, acho que assustada pelo telefone tocando. No identificador de chamadas lá estava:  Lara ✩ . 

A razão da minha inquietação com aquela ligação era porque ali, naquele celular, naquele exato momento de insolação, de ressaca e de realidade quase fantástica estava chamando o nome da pessoa que tinha mudado minha vida e para a qual eu tinha levado flores à sua morada no dia anterior como forma de homenagear o dia em que nos conhecemos. Lara morrera há uns três anos por complicações de uma cirurgia ortopédica quando tinha só 27 anos.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 2)

Eu não escolhi ser o que sou. Acho que ninguém ‘escolhe’ ser uma espécie de alguma coisa. A gente, no máximo, toma uns caminhos que consideramos certos e aguardamos para ver o que sai dali, se é algo certinho, algo completamente fora do imaginado ou qualquer uma das infinitas hipóteses do meio. O resto é dado pelo universo mesmo: um espaço-tempo guardados para a sua vida e a consciência para saber que você está nela. No mais não há nada que possa ser feito para alterar essas duas circunstâncias. Pelo menos é nessa simplicidade que me baseio e que julgo ser razoavelmente válida caso uma pessoa não queira depender da ação ou omissão de entidades outras.

Bom, eu não escolhi muitos dos meus caminhos, acho que foi isso que quis dizer, reformulando e simplificando o pensamento anterior. Eu nasci do jeito que nasci, onde nasci, dentro de uma específica estrutura criada pelos outros que vieram antes de mim e que acham que têm o poder de exercer a autoridade do passado para os dilemas do futuro, o qual obviamente não lhes pertence. Os genes são meus, eu os assumo daqui por diante, ok? Mas também não era isso que eu tinha em mente quando comecei nessa reflexão existencial.

O fato é que fui levado por essas espécies de decisões minhas e dos outros – certas, não certas ou qualquer uma das infinitas opções entre uma e outra – ao ponto onde estou agora, diante de um aparelho telefônico que, ao passo em que vibra, me quebra como cristal frágil. Como uma estrela que entra em um buraco negro e se dissipa, como uma escultura de gelo que se derrete e nunca mais vai ser, como o néctar da flor que não é mais depois que a borboleta o suga.

Lembro que quando era mais moço, mais moleque mesmo, tinha esse medo quando me sentia na iminência de um castigo ou de um acidente causado pela minha negligência às regras naturais e não naturais das coisas e das pessoas. Gosto desses momentos introspectivos em que redescubro os medos e angústias que tinha quando criança, até porque na verdade não deixei de ser o mesmo menino pessimista que temia o anúncio da morte ou de coisa pior quando o galo do vizinho do meu avô cantava à noite. Ou o mesmo garoto criativo e assombrado que via na sombra das árvores alinhadas no horizonte galinhas gigantes e devoradoras de cérebros perseguindo o carro em movimento.

Essa divisão entre adulto e criança eu considero algo criminoso, como se fôssemos duas pessoas diferentes. Viver em módulos, é esse o propósito? Naquele primeiro não era eu porque hoje eu raciocino dessa forma e amanhã não serei também eu porque raciocinarei doutra. O adulto é na verdade uma versão piorada da criança, uma versão de você mesmo que envelheceu e ficou mais feio, mais chato, mais esquecido, mais insistente, mais preconceituoso, mais pobre porque acha que riqueza é ter dinheiro. Não, eu ainda sou a mesma criança e até digo isso para as pessoas que se arriscam a me aturar, que esperem de mim racionalidade mas sobretudo sentimento. Tenho 27 anos, sou  pessimista, criativo e assombrado e é basicamente algo que você ou minha mãe poderiam saber desde que eu me entendi por gente.

E naquele momento diante do telefonema, não existia mais ressaca senão pura embriaguez de justamente o quê? Criatividade pelas milhões de possibilidades do que aquilo representava ou poderia representar, mas a plena certeza de que não era algo bom e o medo correspondente disso tudo trincando meus dentes e fazendo aquela agonia de vidro frágil, buraco negro, escultura de gelo derretendo e todos os et ceteras possíveis e não verbalizáveis.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 1)

Eram 11 da manhã e fazia muito sol. Era verão aqui - é sempre verão aqui - nesse pedaço de chão quente, nessa terra que tem o dom de não consagrar nem desconsagrar ninguém, como diria o mais famoso dos escritores que por essas paragens viveu. Das ignomínias e virtuosidades dessa terra e desse povo eu não sei muito, pelo menos não tanto quanto ele, mas se há uma verdade inconteste é justamente essa: o calor infindável penetra e ferve a vida do natalense da mesma forma que o salitre corrói e evapora as casas próximas ao mar. Simplesmente não há formidável barreira à natureza nesse lugar de muros e vidas nada transparentes mas facilmente devassáveis.

Tinha acabado de acordar no auge de uma ressaca. Costumo chamar esse momento de autoconhecimento como aquele que desenha a linha entre um homem e um verme - os vermes são bem mais resilientes. Estava tão atrasado para qualquer compromisso profissional que já tinha a plena certeza de pertencer ao lado dos platelmintos há muito. A essa hora as bolsas já haviam desmoronado umas cinco vezes, os jornais matutinos de todos os lugares do mundo onde já foi manhã deixaram bem claro que o pior lugar para se viver é e vai continuar sendo o seu.

Seu Abel, o zelador do condomínio, já havia gritado três vezes com o meu vizinho, como costumava fazer todo santo dia porque o 'argentino maricón', como ele diz, fuma indiscriminadamente nas áreas comuns do prédio e ainda deixa as cinzas voarem para dentro dos apartamentos, inclusive do meu. Mas também vejam só, eram 11 horas e Seu Abel ainda tinha muita coisa para fazer além de limpar a mesma sujeira que ele via todo dia de merda, que ele reclamava todo dia de merda e que o deixava indignado e possesso porque aquele inquilino folgado pouco se queixava das suas súplicas enfurecidas.

Não que eu tenha algum carinho especial pelo Seu Abel, na verdade apenas os curtos contatos diários me permitiram observar algumas poucas características. Somos estranhos um para o outro, muito embora saibamos um bocado das nossas respectivas vidas. Contudo, desde que me mudei para cá, ele é a única pessoa que efetivamente 'zela' por mim e que, por sua vez, sabe bem do que acontece aqui em casa: visitas que recebo, saídas e chegadas furtivas na madrugada... eu não sei muito sobre Seu Abel mas o acaso o escolheu como cúmplice das minhas circunstâncias.

Ele sabia, por exemplo, que eu não costumava beber em dias de semana e até ficou surpreso ao me ver àquela hora ainda em casa, quando abri a porta para deixar o lixo no depósito, rosto e roupa amarrotados e um hálito horroroso que fui perceber tão logo consegui balbuciar para ele: "- Bom dia".

Respondeu: "- Bom dia Seu Isaac", com aquela cara de quem muito sabia mas pouco dizia. Ajeitou seus óculos como quem enxerga até demais e me acenou aproveitando para perguntar se eu tinha visto as flores na varanda que ele tinha deixado lá, o que respondi que não. Voltei até a sala e abri a cortina para ver o vaso florido. Mas que sol era aquele? "Por que eu tenho tanto azar de fazer parte da minoria de pessoas que é obrigada a conviver com o sol nesse exato momento?" Refleti. "Ele já se pôs pra mais da metade das pessoas do mundo, afinal é verão aqui no hemisfério sul e acontece de ter menos gente nesse lado do mundo do que no outro lá de cima". Mas, pensando bem, melhor assim, isso de ter menos gente nesse sul que lá no norte, assim sempre sobra mais espaço para a minha autodeterminada e auto insustentável falta de vontade. Daqui eu ainda posso gritar pro sol que inunda o lugar de luz e também para o vizinho que deixa todo dia a varanda inundada com cheiro e cor de charuto vagabundo; afinal eu sei que nenhum dos dois vai me ouvir xingá-lo.

Enquanto tentava me esconder da claridade, o celular tocou. Era um número conhecido, mas que há muito tempo não me ligava. Pertenceu a pessoa muito querida, mas hoje necessariamente ignorada, que me fez até mesmo suspender a ressaca por um breve instante de ansiedade e, por que não, de medo.


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Adultos são só crianças.

Sou uma criança presa no corpo de um adulto. É difícil dizer isso assim, em voz alta, ainda mais nesses tempos em que a gente se obriga tanto, se briga tanto, se cobra tanto, se reprime tanto. Porém, esse é um daqueles pensamentos recorrentes que a gente insiste em tratar como incontestável em algum lugar da insana consciência: eu sou uma criança presa no corpo de um adulto. Simples assim.

Criança, pois, como gosto de dizer, eu sou eu e minhas circunstâncias. Circunstâncias essas tão graves quanto aquelas dos pequenos quando sofrem por não encontrar respostas para suas dúvidas tão absurdamente recorrentes, por não poder brincar com o tempo pois ele é na verdade o senhor de todas as brincadeiras e, portanto, ignora todos os pleitos dos perdedores desesperados como se dono da completa existência fosse. Por não saber perder uma briga e por me perder sempre em outras confusões, de novo e de novo todos os dias. Por me doer com a falta e com o desamor, por me sentir incompleto se me faltar a dor e o amor.

Criança por saber que a única coisa que me separa dos drogados, degradados, exilados, refugiados, perdidos, dos loucos e dos lazarentos, famintos e sedentos, putos de todas as cores, idades, gêneros, identidades, raças, formas, tamanhos e credos é o acaso, a circunstância.

Criança porque cada dia que passa tenho convicção que a própria existência é fruto desse acaso completo que os adultos insistem em tentar classificar e separar para depois oprimir. Pois que nessa vida as chances das coisas darem certo são absurdamente pequenas porque dependem justamente de outros milhares de completos acasos. Não existe tal conceito, harmonia, pois aparentemente nada foi pensado para ser harmonioso senão aleatório e louco. É só parar para imaginar no quanto de caos e beleza existe em um raio de um quilômetro ao seu redor ou na quantidade absurda de maneiras de ser o que se é dentro de um só cômodo.

Se para ser adulto for necessário tomar o caminho contrário de tudo isso, se para ser adulto for mandatório obedecer às regras que só existem para reprimir e oprimir, se para ser adulto for necessário falar apenas a língua da minha verdade sobre todas as outras, desculpem-me, mas prefiro dizer em voz bem alta que vou continuar criança para sempre.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Sobre Felinos



No dia em que ela bebeu, virou uma heroína. Podia até não concordar com todos os seus atos, mas isso não diminui minha concepção de que seu feito tinha sido honroso. Ora, não é sempre que a gente assiste a um coração ser pisoteado sem poder muita coisa fazer, como naquela cena clássica de um estouro de manada de gnus da savana em que a crueldade e a falta de amor pisam mais sobre o leão abatido que os cascos que lhe esmagam sob o calor do sol cintilante. O coração tem dessas coisas, dessas cenas idílicas de dor e tortura. Já dizia Chico César: eu sei como pisar no coração de uma mulher, já fui mulher eu sei, já fui mulher eu sei.

Eu já fui mulher e sei. Na verdade acho que todos nós já fomos mulheres e sabemos, mas asseguro que nem todos fomos fortes como ela. É mesmo difícil ser mulher, ainda mais naquela noite em que ela bebeu, quando seu coração feminino batia mais forte justamente por alguém que não a queria como ela o queria. E ela não se importava com isso, porque todo heroi é por natureza um sonhador; para ele revolução e café se fazem todo dia. Utopia é sim realidade. E não era um simples querer não correspondido que iria demovê-la de seu objetivo micro homérico: insistir no seu desejo ainda que todos lhe dissessem que não, tudo permitisse que não, tudo se alcançasse com o não.

Então ela se embriagou de álcool para concluir que sempre estivera embriagada de amor. O mesmo amor que sempre a tornou tão especial, tão única. Mesmo as piores decisões da sua vida ela sempre havia tomado com um bocadinho desse tempero, o tempo de suas escolhas impulsivas sempre foi o tempo do seu julgamento completamente impregnado de emoção, não que isso signifique que fosse desarrazoada ou injusta. Pelo contrário. Seu temperamento tinha aquele quê ingênuo genuíno de Macabea que perfeitamente coabitava com a sagacidade irremediável e a veia modernista de madame Bovary. Era uma felina atacada, sempre consolada com afagos e carinhos dos seus gatos que a amavam e desamavam.

Sempre havia contornado as dificuldades de sua vida com um sorriso transformador. Era séria, mas não sabia ser severa. Era sóbria, mas não sabia ser rude. Eu tenho bastante propriedade para falar dela pois já fui – e ainda sou – desses gatos pidões que ela acaricia com seu sorriso.

Uma vez nós viajamos juntos, quando ambos ainda éramos gatos. Eu ia em busca de uma utopia, queria fazer revoluções, muito embora ela me alertasse que minha causa já havia nascido perdida. Ela nunca classificou as pessoas pelo seu heroísmo, mas identificava claramente quando uma batalha estava perdida e quando ser herói passava a ser nada mais que estupidez. E se eu a tivesse escutado, teria me poupado de entrar naquela batalha perdida e de me lançar em uma guerra ainda mais cruel. De qualquer maneira, suas palavras de conselho sempre sararam minhas feridas. Voltei daquela viagem menos felino e mais humano por culpa dela e das circunstâncias. Acho que a dor é causa e efeito, objetivo e resultado dessas transformações que a gente passa na vida.

E foi assim que ela virou doses e mais doses para criar coragem de encontrar aquele que amava desde há muito tempo atrás. A última vez que o tinha visto havia sido desastroso e agora nada indicava que seria diferente. Não se engane, ela sabe o que é sossego e o sufoco de ter alguém para acompanhar.

E nesse arroubo de coragem ela foi, ela brigou, ela chorou. Não se calou, não se conteve, foi honesta consigo como talvez nunca houvesse sido. Seu incurável amor, pisoteado, não a impediu também de ser humana, porque isso também é ser mulher – eu sei. Seu gesto heroico foi sobreviver ao amor que tanto lhe fazia bem, mas que tanto lhe machucava. Seu sorriso foi como o sol nascendo no dia seguinte, quando eu a abracei e vi que suas feridas já estavam sendo saradas; que ela agora era menos felina.


Por isso eu olho para ela e acredito que é mesmo preciso de uma boa dose de dor pra se continuar seguindo na vida. É preciso de uma boa dose para nos transformarmos no que quisermos ser em paz.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Sobre ser incompleto.



Todo rascunho é um trabalho; um desenho mal acabado também tem qualidade. As linhas mal tracejadas, os sons não tão harmônicos, as palavras soltas, os passarinhos seguindo suas rotas pelo instinto, tal qual os pintores dos céus que os fizeram vermelho no crepúsculo e azul clarinho na manhã cheia de assobios. Eu me imagino no meio de um rascunho de vida, no meio de um projeto bem pensado, mas bem pouco executado. E é esse quê de interminado, indeterminado, incomum que me atrai – e também me trai, com o perdão do pobre trocadilho.

Interminado porque me parece que nunca os espaços estão preenchidos, há sempre uma tatuagem nova por fazer na pele e dentro dela também. Sempre uma viagem nova a provar, sempre o novo a se revelar pela lente, pela leitura, pela palavra, pois nada está totalmente terminado. Indeterminado porque não existem marcas, nacionalidades, estirpe, cor, sexo, classe, categoria, cargo, papel; nós somos o arremedo daquilo que mais tememos ser, o nada. Eu sou um projeto do nada. Um rascunho daquilo que vai se apagar ou se preencher, mas que absolutamente indeterminado, pois pode vir a ter qualquer forma. Incomum, porque nem minha mente me pertence, ela é projeto dos desígnios ulteriores e insuperáveis dos recônditos do meu desejo, bem prolixo assim, transtornado assim, mas simples assim também.

Passarinho que voa para outro continente ou outra árvore em busca de alimento, passarinho que voa para se encontrar, se alimentar, que precisa de asas tanto quanto eu preciso de palavras para achar o calor e a paz no caos.

Quando tudo isso se acabar, e eu presumo que seja logo, eu quero que esse rascunho continue incompleto, pois essa é senão minha melhor qualidade, é a coisa da qual sou mais capaz ou que mais me representa.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Eu sou efêmero e você também.



Não há nada que impeça a finitude, para ela não há remédio, não há cura. O tempo, ele não poupa pois não se gasta, não se guarda. Para ele não há justiça, ainda que a justa balança do universo seja inexorável. Ora, o equilíbrio não é um valor humano, pois nós medimos e qualificamos as coisas em frágeis e fortes, pequenas e grandes, valiosas ou não; mas todas elas são efêmeras e você também.

É engraçado porque nada faz sentido e por isso mesmo é que tudo se justifica. Sou parte de uma ideia, de uma consciência, de uma inteligência que é tão fugaz quanto a minha própria carne. Porque eu sou efêmero e você também.

Sinto-me pequeno e gigante justamente quando percebo que eu e o mundo somos os dois lados de uma mesma moeda: eu não sou nada sem o mundo e o mundo também seria nada se eu não existisse. Claro, eu não teria como provar que as coisas existiriam se eu não estivesse aqui para senti-las. Porque o mundo é efêmero e você também.

"Meu amor o que você faria se só lhe restasse esse dia?" Não há cura para a morte nem para o fim do mundo, que são basicamente a mesma coisa. Mas há sobretudo o tempo, que é causa e efeito, dano e reparação, absoluto e relativo. E como só há tempo, aproveite-o para amar, para dizer que ama, para permitir que os outros vivam os seus tempos com amor. Uma hora ou outra ele acaba e, acredite, sua inexorabilidade não separa alegrias de suplícios. Porque até mesmo o tempo é efêmero e você também.

Isaac N

sábado, 12 de julho de 2014

Olhos são globos terrestres

Confesso que sou apaixonado pela visão porque ela é substantivo rico. Ponto de vista é o jeito que você olha pras coisas; visão de mundo é a amplitude de conhecimento sobre um conjunto de fatos; a mirada é o olhar, o mirante é o lugar onde se observam todas as coisas lindas e sujas. Até mesmo o que é invisível existe, pois visão é substantivo rico. O escrutínio dos olhos sobre os fatos - os verdadeiros e os mentirosos -, sobre o passado e o presente, sobre o que você espera ver mesmo antes de ter visto, de viver antes de ter vivido, é nada mais que uma metáfora do olhar; é déjà vu.

A verdade é que a gente é só sentido e sentimento; energia e matéria. Somos inúmeros pontos unidos escrevendo retas e linhas tortas. E ainda que esse ponto esteja aqui . ou em qualquer lugar no mapa mundi, desenhando pequenas linhas entortadas na tela do computador ou no caderninho de bolso, o globo terrestre que é cada olho nosso é quem nos conta essa história escrita em luz e forma. Ora, o mundo é uma construção individualista e o seu olhar sobre ele é o que o define e o que o reflete. É minha a imagem que vejo no espelho?

Então, na dúvida, olhe nos meus olhos e me leia. Eu sou todo construção minha e desconstrução também. Sou um produto da visão, da minha, da sua, do erro e do acerto. Minha mirada está aí, sem véu, sem medo, completamente devassável pois que sem máscara ou lente, porque esses olhos são o meu mundo, meu globo terrestre.

Isaac N

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Quasilindo



Frustração é uma receita que você mesmo faz. Bem simples, bem direta: você cria perguntas que geralmente não têm respostas, talvez por serem retóricas em sua essência, e as contesta a partir da sua visão de mundo, que fatalmente é parcial e, logicamente, viciada.

As receitas da vida bem que poderiam ser objetivas como a da frustração; quem dera fossem gramática. As regras de pontuação serviriam para dar os devidos espaços para a respiração fluir entre uma sentença e outra; as regras de sintaxe me diriam que o sujeito pode não estar presente na frase. Não é porque você criou uma interrogação e inventou de colocá-la ali, bem ali, no fim do período, que você vai ter uma resposta afirmativa. A negação é um jeito de responder e também um jeito de se esconder.

O quasilindo disso tudo é que todo novo dia é também um neologismo, porque por mais que se queira, as coisas e as coisas que vêm das coisas não são cíclicas (ainda bem), mas lineares. São no máximo um novelo tão bem enrolado que vira uma bola. E assim você pode também chutá-la pro alto e engalhá-la no poste de luz, no teto de vidro, no espelho, no penhasco - ou adiar tudo pro mês que vem. E por serem lineares, ou enlinhadas, é que as perguntas não têm uma resposta conhecida; ao contrário, ficam aí presas nas palavras não ditas, nos exageros de emoção, nas verdades que você só têm pela metade e nas mentiras que você mesmo se dá por inteiro. Como um livro que voa e que te faz voar, quasilindo.

Só não culpe o outro. O seu problema é seu e a sua retórica é sua, o outro não participa das suas elucubrações mas do seu desejo. O outro não é fator porque é também incógnita. O outro pode até saber a resposta, mas a receita da pergunta, essa é como a frustração, é só você quem faz.


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Meu coração é uma ilha

Já diria Djavan, que djavaneia como ninguém, que o coração é uma ilha a centenas de milhas daqui. Escuto isso tentando devanear, tal qual o poeta inspirado, imaginando um oceano de águas bravias, repleto de criaturas do mar, implacáveis, famintas, orgulhosas. E nessa ilha lá isolada no meio do pacífico, perdida, ancorada em cadeia montanhosa profundíssima que podia muito bem se chamar peito ou edifício, está o coração roçando no imenso mapa azul, que lhe arranca pedaços, lhe faz carícias, lhe joga pedras, lhe lança anzóis, lhe perde a vista.

De tão alta dá vertigem, de tão exposta encandeia e inibe, de tão firme não vibra e de tão bela lembra o sol que nasce - ainda bem - todas as manhãs por trás das cortinas do quarto e das pálpebras dos olhos.

Mas ela está ali, e isso é bonito, ainda que distante, ainda que medida na casa de centenas de milhas, separadas pelo mar bravio e pela saudade. E por mais bonita que seja, não há foto capaz de captar fisicamente tamanha força; memória não compartilhada mas viva como uma imagem impressa que eu mostro com orgulho pra quem eu quiser.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Mas o não-desejo não tem cura.

Não sei viver sem gravidade. Na verdade, nunca aprendi a flutuar, a boiar ou a me abster dos meus próprios pesos e pesares. E da mesma forma que a palavra sugere, a gravidade lembra a severidade que as coisas têm sobre as outras: tudo é grave, tudo te traz pro chão ou então te afunda pro abismo onde a falta é uma constante. Falta de chão, falta de pão, falta de ar, falta de luz, falta de vontade. Não é fácil admitir mas a falta é uma grandeza como a própria gravidade, cresce exponencialmente e se choca contra o chão com toda força se espatifando em não-desejo.   

E eu, aqui enquanto caio, percebo que o abismo mais parece um espelho, pois enquanto nele me jogo ele também vem se jogando em mim. E nesse encontro a meio caminho, nessa queda em que estou, nesse mergulho no rio de cores vibrantes e ondas assassinas, é o precipício que aí vem; eu o vejo chegando pouco a pouco. O choque é iminente, inevitável, é grave.

Eu quero muito acreditar que o meu abismo é o meu desejo já devaneado, estimulado por impulsos de luz, som, fumaça e embriaguez; mas não, aquele que vem, aquele que eu vejo, é uma criança corroída pela medusa carnívora. Todo gris, roto, colado em pedaços; esquecido, desenganado, morto. Assim como o não-desejo, que também não tem cura.


Ninguém é obrigado a ser o chão duro da minha queda, mas todos estão condenados a viver sobre e sob a mesma gravidade.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O desejo é a dor do desejo



O desejo é a dor do desejo. Enraíza os alvéolos e brônquios com um só sopro amargo. Trava tudo; respirar é a última das funções de um pulmão doente de querer. É como um sólido, um bólido, arranhando o tórax por dentro enquanto sacia sua vontade mesquinha de se fazer sentir e se fazer doer, interrompendo o curso do tempo aqui na terra com uma velocidade cadenciada e quase dormente, mas que não te deixa dormir.

Ali as luzes são raios, choques, espectros de uma realidade inventada e desinventada na hora. São pólvoras e faróis explodindo em profusão, são anis, são o que você quiser ver. Um olhar doente de desejo não vê nada senão a cor que lhe apetece, que lhe transporta imediatamente para aquele lugar bom e seguro; para o abismo verde do oceano ou para o sofá de casa. Os monstros são sempre os outros, mas os doentes de desejo se reconhecem, encontram-se em suas angústias e simpatizam em suas vontades. E quando fecham os olhos vêem seu querer borbulhando, correndo no leito de um rio colorido como medusas alucinadas fazendo acrobacias, engolindo-se umas as outras e regurgitando em geometrias agudas, em sons graves. Ali o pensamento não é razão pois o desejo não deixa pensar. Também pudera, o desejo é uma água-viva louca e carnívora em um rio caudaloso.

O desejo é, por fim, armadilha. Ele te dá as respostas que você não perguntou e te pergunta coisas que você não sabe responder. É uma charada das boas, daquelas cuja solução é a própria pergunta dissecada em pequenos fragmentos de sentido. O desejo não tem estética, ele não tem forma, ele não se preocupa com convenções, ele só quer devassar seu pulmão por completo, só quer te ver plano, franco, carnal, honesto, estóico. É bom estar preparado para as verdades, pois ele não é feito de frivolidades mas de concupiscências.

E quando você acha que vai morrer de desejo, eis que o tempo regula tudo e o que estava dentro agora está fora e vice-versa. Eu gosto da dor do querer, pois eu gosto da dor de me sentir humano.