segunda-feira, 10 de novembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 1)

Eram 11 da manhã e fazia muito sol. Era verão aqui - é sempre verão aqui - nesse pedaço de chão quente, nessa terra que tem o dom de não consagrar nem desconsagrar ninguém, como diria o mais famoso dos escritores que por essas paragens viveu. Das ignomínias e virtuosidades dessa terra e desse povo eu não sei muito, pelo menos não tanto quanto ele, mas se há uma verdade inconteste é justamente essa: o calor infindável penetra e ferve a vida do natalense da mesma forma que o salitre corrói e evapora as casas próximas ao mar. Simplesmente não há formidável barreira à natureza nesse lugar de muros e vidas nada transparentes mas facilmente devassáveis.

Tinha acabado de acordar no auge de uma ressaca. Costumo chamar esse momento de autoconhecimento como aquele que desenha a linha entre um homem e um verme - os vermes são bem mais resilientes. Estava tão atrasado para qualquer compromisso profissional que já tinha a plena certeza de pertencer ao lado dos platelmintos há muito. A essa hora as bolsas já haviam desmoronado umas cinco vezes, os jornais matutinos de todos os lugares do mundo onde já foi manhã deixaram bem claro que o pior lugar para se viver é e vai continuar sendo o seu.

Seu Abel, o zelador do condomínio, já havia gritado três vezes com o meu vizinho, como costumava fazer todo santo dia porque o 'argentino maricón', como ele diz, fuma indiscriminadamente nas áreas comuns do prédio e ainda deixa as cinzas voarem para dentro dos apartamentos, inclusive do meu. Mas também vejam só, eram 11 horas e Seu Abel ainda tinha muita coisa para fazer além de limpar a mesma sujeira que ele via todo dia de merda, que ele reclamava todo dia de merda e que o deixava indignado e possesso porque aquele inquilino folgado pouco se queixava das suas súplicas enfurecidas.

Não que eu tenha algum carinho especial pelo Seu Abel, na verdade apenas os curtos contatos diários me permitiram observar algumas poucas características. Somos estranhos um para o outro, muito embora saibamos um bocado das nossas respectivas vidas. Contudo, desde que me mudei para cá, ele é a única pessoa que efetivamente 'zela' por mim e que, por sua vez, sabe bem do que acontece aqui em casa: visitas que recebo, saídas e chegadas furtivas na madrugada... eu não sei muito sobre Seu Abel mas o acaso o escolheu como cúmplice das minhas circunstâncias.

Ele sabia, por exemplo, que eu não costumava beber em dias de semana e até ficou surpreso ao me ver àquela hora ainda em casa, quando abri a porta para deixar o lixo no depósito, rosto e roupa amarrotados e um hálito horroroso que fui perceber tão logo consegui balbuciar para ele: "- Bom dia".

Respondeu: "- Bom dia Seu Isaac", com aquela cara de quem muito sabia mas pouco dizia. Ajeitou seus óculos como quem enxerga até demais e me acenou aproveitando para perguntar se eu tinha visto as flores na varanda que ele tinha deixado lá, o que respondi que não. Voltei até a sala e abri a cortina para ver o vaso florido. Mas que sol era aquele? "Por que eu tenho tanto azar de fazer parte da minoria de pessoas que é obrigada a conviver com o sol nesse exato momento?" Refleti. "Ele já se pôs pra mais da metade das pessoas do mundo, afinal é verão aqui no hemisfério sul e acontece de ter menos gente nesse lado do mundo do que no outro lá de cima". Mas, pensando bem, melhor assim, isso de ter menos gente nesse sul que lá no norte, assim sempre sobra mais espaço para a minha autodeterminada e auto insustentável falta de vontade. Daqui eu ainda posso gritar pro sol que inunda o lugar de luz e também para o vizinho que deixa todo dia a varanda inundada com cheiro e cor de charuto vagabundo; afinal eu sei que nenhum dos dois vai me ouvir xingá-lo.

Enquanto tentava me esconder da claridade, o celular tocou. Era um número conhecido, mas que há muito tempo não me ligava. Pertenceu a pessoa muito querida, mas hoje necessariamente ignorada, que me fez até mesmo suspender a ressaca por um breve instante de ansiedade e, por que não, de medo.


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