No dia em que ela bebeu, virou
uma heroína. Podia até não concordar com todos os seus atos, mas isso não
diminui minha concepção de que seu feito tinha sido honroso. Ora, não é sempre que
a gente assiste a um coração ser pisoteado sem poder muita coisa fazer, como
naquela cena clássica de um estouro de manada de gnus da savana em que a
crueldade e a falta de amor pisam mais sobre o leão abatido que os cascos que
lhe esmagam sob o calor do sol cintilante. O coração tem dessas coisas, dessas
cenas idílicas de dor e tortura. Já dizia Chico César: eu sei como pisar no
coração de uma mulher, já fui mulher eu sei, já fui mulher eu sei.
Eu já fui mulher e sei. Na
verdade acho que todos nós já fomos mulheres e sabemos, mas asseguro que nem todos
fomos fortes como ela. É mesmo difícil ser mulher, ainda mais naquela noite em
que ela bebeu, quando seu coração feminino batia mais forte justamente por alguém
que não a queria como ela o queria. E ela não se importava com isso, porque
todo heroi é por natureza um sonhador; para ele revolução e café se fazem todo
dia. Utopia é sim realidade. E não era um simples querer não correspondido que
iria demovê-la de seu objetivo micro homérico: insistir no seu desejo ainda que
todos lhe dissessem que não, tudo permitisse que não, tudo se alcançasse com o
não.
Então ela se embriagou de álcool
para concluir que sempre estivera embriagada de amor. O mesmo amor que sempre a
tornou tão especial, tão única. Mesmo as piores decisões da sua vida ela sempre
havia tomado com um bocadinho desse tempero, o tempo de suas escolhas
impulsivas sempre foi o tempo do seu julgamento completamente impregnado de
emoção, não que isso signifique que fosse desarrazoada ou injusta. Pelo
contrário. Seu temperamento tinha aquele quê ingênuo genuíno de Macabea que
perfeitamente coabitava com a sagacidade irremediável e a veia modernista de
madame Bovary. Era uma felina atacada, sempre consolada com afagos e carinhos
dos seus gatos que a amavam e desamavam.
Sempre havia contornado as
dificuldades de sua vida com um sorriso transformador. Era séria, mas não sabia
ser severa. Era sóbria, mas não sabia ser rude. Eu tenho bastante propriedade
para falar dela pois já fui – e ainda sou – desses gatos pidões que ela
acaricia com seu sorriso.
Uma vez nós viajamos juntos,
quando ambos ainda éramos gatos. Eu ia em busca de uma utopia, queria fazer
revoluções, muito embora ela me alertasse que minha causa já havia nascido
perdida. Ela nunca classificou as pessoas pelo seu heroísmo, mas identificava
claramente quando uma batalha estava perdida e quando ser herói passava a ser
nada mais que estupidez. E se eu a tivesse escutado, teria me poupado de entrar
naquela batalha perdida e de me lançar em uma guerra ainda mais cruel. De
qualquer maneira, suas palavras de conselho sempre sararam minhas feridas.
Voltei daquela viagem menos felino e mais humano por culpa dela e das
circunstâncias. Acho que a dor é causa e efeito, objetivo e resultado dessas
transformações que a gente passa na vida.
E foi assim que ela virou doses e
mais doses para criar coragem de encontrar aquele que amava desde há muito
tempo atrás. A última vez que o tinha visto havia sido desastroso e agora nada
indicava que seria diferente. Não se engane, ela sabe o que é sossego e o
sufoco de ter alguém para acompanhar.
E nesse arroubo de coragem ela
foi, ela brigou, ela chorou. Não se calou, não se conteve, foi honesta consigo
como talvez nunca houvesse sido. Seu incurável amor, pisoteado, não a impediu
também de ser humana, porque isso também é ser mulher – eu sei. Seu gesto
heroico foi sobreviver ao amor que tanto lhe fazia bem, mas que tanto lhe
machucava. Seu sorriso foi como o sol nascendo no dia seguinte, quando eu a
abracei e vi que suas feridas já estavam sendo saradas; que ela agora era menos
felina.
Por isso eu olho para ela e
acredito que é mesmo preciso de uma boa dose de dor pra se continuar seguindo
na vida. É preciso de uma boa dose para nos transformarmos no que quisermos ser em paz.
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