quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Encantamento com a finitude.

Eu queria falar sobre o amor, mas falar sobre isso é olhar muito de perto para o abismo que é a finitude da vida. Então eu vou falar disso, mas fingir que não é sobre amor, vou dizer que é sobre a finitude da vida em si (sabendo que é sobre o amor).

A primeira coisa que a finitude me traz é o medo. Eu tento entendê-lo para através dele compreender o mundo, vivenciar os lutos e só assim esquecer que ele existe. O último balanço da rede, o extinguir da estrela cadente, o último aplauso do último show do artista, o último trago antes de começar o retorno à sobriedade. O medo é o oposto da magia, mas não como antagônico e sim como complemento. Afinal, o medo é a dose de morte na vida e a dose de vida na morte.

É preciso andar na ponte do rio que cai dos medos para se entregar à magia. A magia que é o encantamento, a esperança, a alegria e o conformismo de que isso tudo acaba, mas mesmo acabando, deixou sua história e fez alguma mudança no mundo.

Veja bem, veja essas linhas, por exemplo. Elas não são nada além de traços, agrupamentos de alguma substância química que, em si, não representam nada. Aliás, é preciso um bocado de informação para entender que esses traços arredondados que se juntam e formam palavras, que contam uma história. Eles - os traços - movimentam alguém, causam embaraço, indignação, interesse. É preciso que um ser tenha consciência, tenha visão, que entenda o português, que enxergue esses traços no espectro de luz em que eles foram desenhados, que tenha capacidade de interpretação, compreensão, todo esse quebra-cabeças para transmitir uma mensagem; uma informação partindo de alguém que está vivo hoje mas que vai morrer para alguém que pode nem estar vivo hoje, mas que também vai morrer.

Não falo a partir de uma ótica pessimista, afinal não estou deprimido com a realidade do sopro de vida que me foi dado. Pelo contrário, enxergar o medo da finitude da vida é perceber o tanto de cor que existe em uma aquarela, é sentir o calor de um abraço no frio escuro, é a pequena luz que pisca no céu opaco. É o tudo traduzido na linguagem da vida, é como enxergar um deus, deixar-se seduzir pelo mistério e nele encontrar respostas abertas para tudo que não sabemos o que é. É o complemento um do outro.

Você já parou pra pensar que um dia você acordou dentro de uma máquina super potente, cheia de energia, que praticamente se gerencia a si própria de forma automática, mas que te colocou para tomar as decisões mais importantes? Como compensação para essa árdua tarefa, ela te deu prazeres e te entregou o amor, para que você visse que o sopro de vida tem sim uma função, mudar o mundo de alguma forma. E essa magia só pode ser o amor, pois ela é em parte triste e preocupante, mas também é em parte inspiradora e alegre.

Por isso que entre o medo e a magia existe toda a vida. A vida é o abismo e olhar para dentro dele demanda coragem para deixar sua marca no mundo. 

Não tenha medo do abismo, o amor é o desafio e também a recompensa para se justificar a nossa parca e ínfima existência nesse pequeno planeta que, assim como tudo nessa existência, também um dia vai se acabar.

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Do nada ao nada, uma hora vai dar certo.

 


O título desse texto, embora seja aparentemente um pouco deprimente, não é sobre vazios e faltas. Talvez seja justamente o contrário, o de encontrar sentido e preenchimentos para um minúsculo momento que vai do nada ao nada, do zero que existia antes de nascer ao algo diferente do zero, digamos, um novo zero, depois que a gente se vai.

Essa reflexão me bateu numa entrevista que tive com uma pessoa que estava privada de liberdade há uns dias atrás. Estávamos só eu e ele e tínhamos a mesma idade, o que me chamou logo a atenção. Na sala, uma cadeira de escola para cada um e uma mesa nos separando. Entre nós, papéis onde eu anotava coisas que não eram ele, mas uma informação sobre ele que só fazia sentido no mundo dos homens. “Diga-me seu nome, seu número de identificação, onde corre o seu processo, o que houve nesse dia, você precisa de alguma coisa?”.

E ele me dava respostas que só faziam sentido se entendêssemos as coisas dos homens, sobre o tempo do homem, sobre a vida do homem. Ele, preso, porque fez alguma coisa desaprovada por um homem, porque foi assim que convencionaram os homens, porque seus números e dados – ficções usadas para decidir sobre sua vida – disseram que ali ele deveria estar. Eu, solto porque alguém me permitiu, porque foi assim que convencionaram os homens, porque meus números e dados exclusivamente humanos me deram um rumo diferente daquele que diante de mim se sentava na cadeirinha de escola, embora tivéssemos nascido praticamente na mesma data há uns anos atrás.

Eu, filho da terra e da água que habitam esse lugarzinho há bilhões de anos, pequenas partes agrupadas em uma probabilidade minúscula de acontecer, mas que aconteceu. E justamente naquele dia estava eu diante dele, filho da terra, meu irmão, partículas diferentes de água e terra reunidas para formar outro alguém igual - embora diferente - de mim.

Às vezes me pergunto: por que não falamos sobre o tempo das estrelas? Não nos esqueçamos para não perder a ternura jamais: para a natureza éramos apenas eu e ele, duas cadeiras e uma mesa e todo o universo conspirando para que no minúsculo momento marcado entre o nascimento e a morte, pudéssemos ver isso tudo que se passa aqui fora – e aqui dentro. Entre o que vinha antes do nada e o que virá depois do nada, existe uma coisa acontecendo para todos, que é a chance de experimentar a magia e o inferno que é estar vivo.

Éramos nada há alguns anos atrás. Éramos possibilidades e nos tornamos reais. E daqui a alguns anos, seremos apenas uma versão diferente do nada, porque nossas partículas se tornarão outras coisas na dança maluca dessa pequena esfera metálica que flutua sobre o vácuo.

E justamente por não falarmos tanto assim sobre o tempo das estrelas é que estávamos diante do absurdo dessa existência infeliz em que uma pessoa anda solta e outra, presa. Entre nós não havia diferença substancial: as estrelas nos formaram igualzinho, nós nascemos iguaizinhos e vamos morrer para virar mais ou menos a mesma coisa.

Eu não tenho condições de julgar as ações humanas, especialmente as que o levaram até ali, e, se alguém acha que tem, tampouco me oponho. Creio que no nosso atrasado jeito de viver é apenas mais um dos males a que nos submetemos. Salvamos a consciência sacrificando existências. Sempre foi assim, afinal, anda tudo muito mais errado no mundo dos humanos do que certo: nós estamos simplesmente acabando com nossas chances de sobrevivência no planeta vivendo uma vida injusta, ridícula e absurdamente esmagadora para outras pessoas e espécies que compartilham a terra conosco. Não existe uma criança, uma flor, uma formiga ou ornitorrinco que não esteja ameaçado por uma bomba nuclear, por um rio derramando mercúrio ou por uma chaminé vomitando enxofre.

Então o que eu pude dizer para a pessoa sobre as coisas humanas que o oprimiam? Profissionalmente, falei as coisas mundanas que tinha que falar. Mas disse ainda: “aguente firme e seja paciente que há tempo para ser várias coisas nessa vida, esse não precisa ser o seu fim, pois tudo é um novo início”.

Foi o melhor que consegui falar para aliar o mundo humano ao mundo da natureza, mostrar que o nosso minúsculo tempo de existência aqui na terra é grande o suficiente para abraçar o mundo da natureza – que é muito maior que a cabecinha dos homens.

Entre o nada e o nada pode acontecer tudo. E essa é a beleza que vale pra mim, pra você e pra todos.

Estrelas e corações


Uma estrela explodiu lá longe. 

Na noite escura do céu, quando uma estrela explode é difícil não perceber o clarão lá no alto: as cores e formas se engolindo numa dança cósmica inebriante, como se fizessem rodopios ao som de caixa e tambor e ao toque de mãos divinas. Algo como uma pequena escola de samba suspensa no infinito.

O que foi primeiro um pequeno brilho no céu, bem pequeno, foi crescendo aos poucos. Alguns dias depois da explosão, era como se uma luz tomasse conta da noite e não houvesse mais outras estrelas para se enxergar naquele momento. Era tão claro, como se aquela luz deixasse enxergar até mesmo o ar. 

Eu vi essa estrela explodir. Vi seus pedacinhos chegando até mim, me atravessando, me transformando, combinando e reorganizando em uma nova composição. A princípio eu neguei que aquela luz daquela estrela lá longe pudesse me mudar. Quem é ela? Quem ela acha que é? Eu não pedi nenhuma combinação nova em mim. Mas, sob aquela luz que iluminava o céu da noite, eu dancei. Dancei ao ritmo do samba que ela me deixava ver e ouvir, rodopiando, atravessando em si mesma e em mim também, me enchendo de vida mesmo sendo ela só um feixe de luz vagando apática à minha existência.

Depois que ela entrou em mim, seu brilho já era eu.

E aí meu coração explodiu também. Nas noites que insistiam em escurecer, tudo era luz, tudo era cósmico; a existência era uma sinfonia gostosa de se ouvir. Não sei se quando meu coração explodiu ele deixou de existir, talvez por um breve momento ele seja mais que um coração e menos que uma estrela, mas eu sei que ele também existe hoje em outros corações. E depois disso, ninguém mais vagou com apatia, pois o universo estava rico em beleza, em toque, em cura.

O que explodiu lá longe agora brilha em todo lugar, inclusive aqui perto.

domingo, 30 de outubro de 2022

Eu, quem?

Venho tentando ser eu há muito tempo, mas às vezes desisto. É muito difícil encontrar uma razão que justifique o esforço que é se mostrar uma pessoa só, sempre e sempre. Além disso, cadê o meu eu que gostava de fingir ser professor, que brincava o tempo inteiro e adorava olhar para as estrelas, que dançava sem vergonha? Cadê minha criança?

Não acho que seja privilégio meu sofrer sozinho na busca de escolhas justas para mim e para o mundo, livre de interferências e sólida face às incertezas da vida. Justas em parte, porque eu sou fraco, egoísta e minto. Não sei o que fazer com o amor que depositam em mim e tenho dificuldades em retribuir e ser recíproco. Admitir isso me deixa mais próximo do que eu quero ser, claro, mas não diminui aquele esforço. E esse movimento de Sísifo, eternamente subindo pedra morro acima e vê-la rolar desabalada morro abaixo, todo santo dia, só traz angústia.

Tenho inveja de quem crê em deuses ou astros, signos ou mãos, queria ter essas cartilhas ou muletas para ser menos triste. Abraçar a simplicidade, a idade, a cidade, a felicidade, que para Nietzsche é a ignorância. E eu concordo com ele por um lado: quanto menos você se importa com os problemas, menos eles te incomodam. A questão é que muita gente toma o caminho oposto, tem na ignorância a chave para a maldade (consigo e com os outros) e não para a felicidade. Afinal, não é preciso ser triste para ser consciente, dá para ser triste e ser um filho da puta também.

Nessa luta para descobrir quem sou, preciso me ouvir mais e resgatar minha criança. Quebrar a casca grossa do adulto e deixar sair o que me aprisiona e entrar o que me liberta. Eu vou iniciar esse processo e desistir várias vezes, mas não vou deixar de fazer, prometo. Esse caos aqui dentro, essa confusão, vai sempre existir, eu só preciso respirar e olhar para estrelas e dançar que vai dar certo.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

A luz acesa no teto da sala.


Então você nasce. Assim, simplesmente nasce. Acenderam um interruptor e agora aquela luz no teto da sala que vê e escuta, que toca e é tocado, é você. Brilhando todo dia sem saber o porquê e o como, vendo as coisas ao seu redor existirem e você supostamente tendo que fazer alguma coisa a respeito delas: comê-las, se defender delas, usá-las como arma para conquistar alguma coisa, às vezes todas ao mesmo tempo, às vezes nenhuma delas. Até que um dia um dia você olha para o espelho e diz, “esse sou eu”, esse nariz feio é meu, esse andar esquisito de como quem está pulando é meu, esse desconforto de não saber olhar as pessoas no olho é meu, a incapacidade de dizer não em muitos momentos e a vontade de agradar todo mundo ainda que custe a minha própria saúde são minhas. E é claro que tudo que é seu é também produto dos meios que lhe criaram, afinal você também aprende que da semente do feijão vai nascer outro feijão. Mas não é o mesmo feijão, é outro, só que parecido. Um feijão que é introspectivo e guarda as mágoas sem saber se abrir, igual ao meu pai, e dependente da companhia de alguém ainda que esse alguém seja ruim para mim, igual à minha mãe.

Você também aprende que aquele interruptor pode ser desligado, mas mesmo assim não desliga - ou não tem coragem de desligar. Sua luz ilumina outras pessoas e você sabe que a tristeza não é outra coisa senão o outro lado da alegria, assim como o frio da luz apagada é só o outro lado do cheiro e da cor dela acesa. E também porque, se você pensar bem, há outras formas menos dolorosas de enxergar o escuro e de fazer com que o seu redor tenha mais beleza e mais prazer.

Afinal de contas, de um ponto de vista, você nunca se mexeu, tudo se mexeu o tempo inteiro na sua frente com a sua participação. Igual à luz no teto da sala, você viu a sua vida acontecer na sua frente e embora os outros digam que você está se mexendo, você viu tudo isso pelo seu olhar, pela sua luz. É por isso que não dá para fugir dos problemas, afinal você em Paris, em Roraima ou em Varginha é ainda você. Apague a luz e ainda vai ser você. Too bad.

É esse, então, o único e o grande custo da sua luz: o dever de enxergar as coisas de forma diferente é de ninguém senão seu. As mágoas guardadas, a introspecção do pai ou a carência afetiva da mãe são minhas também, elas são algumas das coisas que a minha luz enxerga, mas o peso de querer viver nessas circunstâncias é meu enquanto aquele interruptor estiver aceso. Essa mesma luz que no espelho diz “esse sou eu”, deixa que eu faça tudo para brilhar ainda mais, me libertar, experimentar, fazer diferente, ousar, criar, passar uma tinta rosa no meio da cara como se fosse carnaval, tocar as flores mais bonitas e coloridas do jardim, sair na rua vestido de um novo eu, dançando e andando com pulinhos ouvindo gloria groove. No fim das contas, a constatação é essa: é ridícula a quantidade de coisas que dá para enxergar por uma luz só no teto da sala. Ufa, ainda bem!

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Inauguração


Pode parecer meio viajado, ou viajado até demais, mas você já parou para pensar como é esquisito o nascimento? Não estou falando SÓ do nascimento de um bebê, mas do nascimento das coisas e seres em geral. O da plantinha, o do boi, o do menino chorão. O do adulto chorão, o das cachoeiras, das montanhas, dos tsunamis, dos furacões. O nascimento da pedrinha, do microbiozinho, do vírus, do planeta ali do lado, do lodo que gruda na tigela de água onde seu gatinho, que também nasceu um dia, bebe água. Da água mesmo, do ar, da terra. Tudo nasce, tudo era uma coisa e passou, de uma hora para outra, a ser outra, assim, quase que do nada.

Claro, não é sem motivo que um bebê nasce ou que você se descobre uma outra pessoa. Tem muitos processos acontecendo o tempo inteiro para que coisas nasçam a partir de outras coisas, que vão se juntando, se misturando para depois virar outras coisas e assim sucessivamente, para todo o SEMPRE. E é legal imaginar que essa é a única forma que a palavra SEMPRE realmente se aplica. Não é do jeito que a nossa metafísica limitada acha que as coisas duram para “sempre”, porque nada dura para “sempre”, mas sim, que as coisas SEMPRE mudarão. Vai lá no inglês e me diga com que parece a palavra Always: “de todo jeito” ou “todos os caminhos”. Eu nem sei se vem daí essa palavra, pois eu só sei falar inglês o suficiente para não morrer de fome e sede por uns dois dias, mas o que eu quero dizer é que SEMPRE quer dizer “vai mudar”, de todo jeito.

E nesse processo eterno de nascer uma coisa que era outra, a gente pega muita, mas muita carona. Afinal, queira você ou não, a diferença entre uma poça de lama e uma pessoa é meramente de organização das coisas minúsculas que juntas vão dizer se você é uma poça de lama ou uma pessoa. Os astrônomos poetizaram isso, dizem que nós somos “poeira de estrelas”. David Bowie, holístico, já meteu Stardust no meio de suas canções e assim todo mundo agora sabe que, de alguma forma, é também parte dela, dessa matéria que vaga no universo e que acontece de formar você e eu, justo aqui e justo agora.

Então é assim, todo mundo se inaugura, partindo de algo que era antes e que agora vai ser outra coisa. Entre nascer um microbiozinho e um furacão, nasce um homem que larga tudo que lhe era caro por conta de um trabalho novo, inaugura-se uma pessoa apaixonada, nascem desapontamentos, nasce um ansioso, nasce tristeza e nasce alegria nas incríveis coisas novas que esse homem nunca esperaria viver. Inauguramos versões de nós mesmos para poder viver o nosso tão curto “sempre” da melhor forma possível. E convenhamos, é muito curto esse tempinho aqui no meio de tudo que não é nosso nem nunca vai ser para se negar a aceitar que essa inconstância é a única constância que existe, que dá tempo ser muita coisa antes de ir de vez e de fechar os olhos para nem ver mais o que seguiu nascendo. Aprendizado, é esse o outro nome dessa inauguração tão festiva e dolorosa.

Por isso que é tão bom conhecer lugares novos quando dá. Assim como é ótimo desistir do filme no meio do cinema, sair das roubadas, pular as fogueiras. Pegar uma estrada desconhecida, pular uma cerca. Querendo, dá para inaugurar um universo novo todo dia, dá para fazer nascer o inédito. Porque no fundo - e daqui a pouco - todo mundo é e vai ser SEMPRE poeira.


sábado, 4 de julho de 2020

O Pastor maremano.

Eu gosto de gente. Gente homem, mulher, crianças, bebês. Gente de brinquedo também dão conta, mas é claro que eu prefiro uma boa agarrada numa perna que se mexe e é quentinha. Eu adoro pernas de gente, sabe, sei lá, parece que, quando minha libido está a mil, as pernas dos humanos são ideais. Às vezes, me deparo com a perna do Nagib e me sobe aquele calor e eu imagino que é a Princesa ali, às vezes imagino que é o Bilota, não importa, pois eu também resolvo muito rápido, muitas vezes não dá nem tempo dele perceber, fecho os olhos e pá, já era. Às vezes levo uns chutes, noutras ele fica rindo de mim, eu não entendo, de verdade, mas eu sou feliz assim, não me julguem, só em pensar na Princesa ou no Bilota eu fico desse jeito. Às vezes eu fico assim também quando estou com fome e, pensando bem, coitado do Nagib, porque se tem uma coisa sobre mim é que eu estou sempre faminto. Bom, tem também aquelas vezes em que eu gosto de agarrar as pernas dele enquanto penso nos meus pirralhos, é como se elas fossem o próprio Hercules, meu filhote (agora você me lembrou que faz tempo que não o vejo, onde será que ele está?) ou um dos meninos do Bilota e logo me dá aquela vontade de cuidar, de lamber. Louco isso né? Também não sei explicar não, só acontece, é bem forte e eu gosto muito, não consigo nem me conter. Tem vezes que eu sei que é só uma perna mesmo, de gente humana. E ainda assim vale a pena lambê-la de vez em quando. Acho que eu sou meio esquisito, mas me perdoem, por favor, eu sou assim, é meio jeito!

Eu gosto de verdade de gente humana, normalmente eles me tratam bem e me dão quase tudo que eu quero e eu quero muito pouco, na verdade, um pedaço de carne só pra mim, um prato de ração só pra mim, um frango só pra mim, um bolo só pra mim e um biscoito só pra mim. E toda vida ficam: "Zeus, chega de comida, Zeus para de querer comer no prato do Nagib, Zeus, saia já de cima da mesa!". Tá, não fique aí pensando que eu sou só egoísta e bagunceiro, eu tenho muita fome e eu faço muita coisa, eu mereço. Olha, pensando bem, acho que minha fome só aumenta porque eu passo o dia vigiando a casa para não deixar ninguém entrar e isso dá um trabalhão, ficar latindo alto o tempo inteiro cansa!

Acho que aprendi a ser assim, faminto e barulhento, com meus pais e, mesmo que eu não me lembre deles, é assim que eu sinto! Toda vida quando um humano novo me vê pela primeira vez sempre diz: "Olha, um pastor maremano!". Bom, meu nome é Zeus, não é pastor maremano. E o Bilota é o Bilota, não é "vira-lata" como sempre dizem por aí. Os humanos que moram comigo concordam com isso, tanto que nunca me deixam faltar nada e sempre me tratam bem e vivem rindo das minhas coisas, não sei bem o porquê, mas por exemplo eles acham engraçado quando eu pego uma bola verde que o Nagib vive perdendo e eu vou lá e sempre busco pra ele. Dia desses eu até consegui pular o portão só para pegar a bola que o Nagib tinha acabado de perder! Eu corri com todas as minhas forças, atravessei o gramado, me agarrei na grade e lá em cima vi que tinha uma abertura mais larga que dava pra eu passar e passei! Sofri, mas peguei a bola do Nagib. Eu não sei porque ele brigou tanto comigo nesse dia. Mas também, coitado, eu acho que o Nagib não é tão feliz quanto eu, porque eu vejo ele sempre meio triste fazendo as mesmas coisas e solitário, acho que ele não sai muito, pelo menos ele sai menos que eu, que todo dia, no começo da manhã e quando o sol está se pondo, dou meu passeio. Tá, eu uso uma coleira, não é tão legal por causa disso, mas eu amo ainda assim e isso faz meu dia. É a melhor sensação! Não tem ração, não tem biscoito, não tem perna, não tem nada que me impeça de sair, eu até seguro meu cocô e meu xixi para coroar essa hora mágica. Posso dizer com segurança que sair de casa faz parte de mim. E além disso, lá fora eu consigo encontrar quase sempre o Bilota, porque ele mora depois da grade, do outro lado da rua e dorme debaixo da marquise do vizinho. Ele é meu amigo, tanto que eu o respeito e nunca quero a comida dele, mesmo que eu esteja com fome como eu sempre estou (acho que já disse isso né?). O Bilota não usa coleira como eu (não sei porque ele não usa) e é bem diferente de mim, mais magro, marrom. Tem sempre alguém que dá comida pra ele, mas eu acho que ninguém cuida dele como cuidam de mim não.  Outro dia vi uma pessoa o chutando na rua, não sei o que o Bilota fez, mas ele vive machucado, acho que briga muito, mas não comigo pelo menos, ele late pra mim e eu pra ele, quase sempre é assim: lato pra ele e pros filhotes dele que já estão quase do seu tamanho (por falar nisso, cadê o Hercules? Lembrei agora, nunca mais o vi).

Eu acho que o Nagib é mais novo que eu, ele não é tão grande quanto o pai nem quanto a mãe, acho que é adolescente, ele deve ter uns quinze anos de idade humana, pelo menos é o que eu acho. Ele me lembra muito meu filhote, o Hercules, que era acanhado, meio fracote também, mas muito esperto. Não sei quantos anos na idade humana significam o infinito, mas no tempo dos cachorros, qualquer dia sem meu filho parece isso: uma eternidade. Eu às vezes me esqueço, mas depois me pego lembrando dele correndo no gramado tão feliz, nossa, quanto tempo faz isso? A última vez que o vi, um humano estranho estava com ele nos braços e eu vi quando ele entregou algo que eu acho que era dinheiro para o pai do Nagib. Eu lati muito, mas não teve jeito, o humano levou o Hercules embora e meu coração ficou destroçado.

Acho que eu nunca mais confiei tanto no pai do Nagib depois disso. Mas, ainda assim eu amo muito o Nagib, ele é o máximo, eu só amo mais que ele o meu Hercules, o Bilota e a Princesa. Tá bom, hoje em primeiro lugar, quem eu amo mais do que tudo quem é a Princesa. Sempre que ela passa aqui na frente, me deixa louco, eu até esqueço do que eu estou fazendo e me ponho a latir desesperadamente ao vê-la passar em frente ao portão da nossa casa. Ela também tem coleira como eu e tem sempre um lacinho vermelho pequeno na cabeça, e também tem o humano que cuida dela, só que mais velho, mas que parece gostar muito bem dela. Vivem chamando-a de 'poodle', mas pra mim ela é só a Princesa. Eu não sei que perfume ela usa, mas tem alguns dias que eu simplesmente não me seguro, eu enlouqueço, lato muito mesmo, eu não consigo explicar, só sinto sabe? A Princesa é a coisa mais linda desse mundo, mais até que o Bilota, e olhe que eu também sinto essa coisa com o Bilota, mas a Princesa tem um cheiro...

Mas eu vou contar o que aconteceu naquele dia, pelo menos vou contar o que eu me lembro. Nagib estava dormindo e já era bem tarde e muito quente mesmo,  tanto que eu presumi que era um dos dias que eles chamam de domingo. A Princesa tinha acabado de passar pelo portão e ela tava com aquele cheiro do cio. Eu fiquei louco. Lati muito para Nagib sair de casa, me colocasse a corda na coleira e me abrisse o portão, mesmo que não fosse a hora ainda. E olhe que eu nem estava com vontade de fazer cocô ainda e tão pouco tinha terminado de comer minha ração do almoço. Mas Princesa, ah meu bom deus canino, eu não me segurei. Lembrei daquela grade mais larga, lá em cima do portão, a que eu tinha conseguido vencer uns dias atrás, corri, atravessei o gramado, subi e: livre! Livre para a Princesa! Eu ainda ouvi de longe alguém gritando meu nome: "Zeus, Zeus, volta aqui!" mas confesso que eu não queria saber de mais nada, meu coração estava acelerado, metade porque eu estava livre, metade porque eu queria sentir Princesa e aquele cheiro dela, meu deus que cheiro era aquele! E assim, meu coração pulsando como nunca, eu estava cego de paixão: pela rua desamarrado, como sempre quisera fazer, pela delícia que era sentir todos aquele cheiros e sabores tão rica e tão suja rua (que delícia meu deus), e por Princesa, que me chamava com seu odor, me dizia: “vem meu Zeus”.

Eu corri muito, confiando no meu olfato, mas de alguma forma, quanto mais eu corria, menos eu sentia o seu cheiro. Eu andei bastante e, em algum momento, já nem sabia mais como voltar para casa nem senti Princesa. Acho que ela deve ter se escondido em algum lugar ou será que eu corri para a direção contrária? Eu realmente não me lembro o que aconteceu, porque depois de alguns quarteirões e uns parques no caminho, enquanto eu parava para descansar, um carro preto com vidros fumê parou do meu lado. Na janela eu notei que havia um humano homem na direção e uma humana fêmea na parte de trás. Ambos abaixaram o vidro e foi quando eu percebi que ela tinha um biscoito de ração na mão. Vocês sabem, eu tenho muita fome e não resisti: fui atrás do biscoito, ainda mais porque eles pareciam estar me chamando, era parecido como o Nagib faz quando me chama. “Cachorro, cachorrinho, garotão”, nem sei o que isso tudo significa, mas parece que eu sou um deles ou todos eles. Eu sempre tive quase certeza que eu era mesmo Zeus, mas mesmo assim saltei para dentro do carro que tinha agora as portas abertas e, meu deus, aquele biscoito estava mesmo delicioso. A mulher me fez um carinho nas orelhas e eu amo carinho nas orelhas. Amo mais ainda os biscoitos que ela tinha em uma sacola no seu colo, comi-os com pressa, tanto que fiquei bem calmo e relaxado. O carro andou.

E foi assim que eu cheguei aqui. Eu só queria encontrar Princesa, mas agora eu não vejo nem o Nagib, nem Princesa, nem Pilota, nem mesmo o pai do Nagib que sumiu com o Hercules dia desses. Eu só vejo pessoas estranhas, todas com um certo aspecto sombrio e de maldade. Vi quando uma pessoa, um homem, todo vestido de preto, chegou para alguém que parece ser o dono da casa e disse: "Senhor Presidente, temos que resolver um assunto urgente", ao que este o respondeu com um bocado de palavras que eu não sei o que significavam, mas que eu lembro que eram algo do tipo: “viado escroto, vai usar seu ânus para excremento, prefiro ter um filho ladrão a um filho viado”. Depois ele ficou falando que “índio era peso morto e umas arrobas a menos não fariam falta”. Ouvi ainda quando ele disse: “E daí que vai morrer gente? Todo mundo morre!” Eu realmente não sei o que são essas palavras, o Nagib pode ser meio duro comigo, mas eu nunca fui tratado como aquelas pessoas a quem o senhor mais velho “O Presidente” se referia. A única coisa que eu entendi de verdade foi quando ele disse: “Quem procura osso é cachorro”. Bom, nisso eu concordei, mas não entendi muito bem.

A mulher que me deu biscoito, eu acho que ela não gostava de cachorros. Ontem mesmo eu vi o Pilota pelo vidro da porta, na rua, como sempre faminto e marrom. Acho que ele é marrom de sujo, na verdade, ou então um pouco mais marrom porque não toma banho. Ela passou por ele e o tratou mal, tão mal que me lembrou alguns humanos que vez por outra chutavam o Pilota lá na minha rua. De qualquer forma, eu não entendi o que eu fazia ali. Meu nome é Zeus, mas insistiam em me chamar de Augusto! Eu não precisava de outra casa, o Pilota sim, mas ele não teve chance. Às vezes eu acho que os humanos fazem menos de mim, afinal por que trocaram meu nome que, até onde eu sei, estava escrito na minha coleira? E por que eu tinha que tirar tantas fotos e ser tão paparicado, me chamando de zero cinco, zero seis, pequeno príncipe... Eu sou o Zeus, amigo do Nagib, do Pilota, pai do Hercules, gosto de carne moída, bolo e biscoito, é só isso! Eu queria ficar com a Princesa, mas não queria ser príncipe.

Ainda bem que o pesadelo acabou logo. O Nagib e o pai dele (nós temos nossas diferenças, você sabe), ficaram sabendo que eu estava por aqui, não sei como, e vieram me resgatar. O homem que chamavam de Senhor Presidente não deu a mínima, parece que ele tinha pelo menos uns dez humanos vestidos de farda verde-oliva para receber a toda hora, e todos o cercavam e o bajulavam, como eu mesmo faço com algum humano que tem bolo, carne ou biscoito na mão. Bom, melhor assim, com certeza eu prefiro minha vida de Zeus sem sobrenome do que aquela de Augusto com sobrenome de gente ruim.