segunda-feira, 10 de setembro de 2007

LINHA FÉRIAS

O som da buzina é irritante, enjoado e agoniante. É praticamente uma dor de cabeça que não se acaba, que teima em aquecer os miolos na medida em que os trilhos vão passando, em que o horizonte vai sendo invadido, tal qual Napoleão quando invadira a gelada Rússia, pela sonora – ruidosa – máquina ferril. Lá dentro estão os maiores responsáveis pelo funcionamento de tudo que a gente mais precisa, mas que muitas vezes nem imaginamos como se opera. Um dia, por exemplo, uma discussão sobre os computadores e suas operações desconcertantes provocou uma certa dissonância no ambiente pré-acadêmico urbanizado e socialístico – que nada mais é do que a mesa de bar – quando chegaram à conclusão que nem mesmo o mais renomado cientista conseguiria montar um espécime, nem mesmo um mísero protótipo, mesmo com todos os seus conhecimentos científicos especializados.

O responsável pelo barulho monofônico, aquela máquina robusta, cuja moral e imponência desafia toda e qualquer forma viva e não viva, movente ou não, e cuja potência contradiz com sua enorme sujeira e descuido, é o meio por onde caminham e transitam os mais nobres operários do conforto alheio, tão sujos e descuidados quanto o próprio veículo que os transporta. São os construtores das casas, dos prédios e escolas que, como diria o pseudopoeta-anarquista, depois de prontos, não podem sequer passar sobre suas calçadas, são os montadores de carros que não têm carros, são os comerciantes descapitalizados, são as alquimistas do sexo, os alquimistas das substâncias ilícitas que todos tanto buscam, os marginais (sim, os marginais, afinal se não fosse por suas reles, infames e desvairadas existências, de que serviriam os polícias?), os pedintes que limpam e riscam carros. Se fosse transformar esse enredo em uma linguagem figurativa, sem querer usar eufemismos bobos e indiretos, compararia a situação ao sistema digestivo da sociedade. Respondem pela alimentação, pela transformação, mas no fim, e ainda de acordo com Rita Lee, tudo vira bosta.

Aí vem o ruído e quebra a concentração. Droga, onde é que eu parei? Será que foi na parte que via o menino do lado de fora a comer terra ou foi no senhor do lado de dentro que queria nem que fosse terra pra comer?

Mas enfim, o destino era o campo verde, o lugar bonito, o desconhecido tão conhecido. Era o lugar fincado no meio de um canavial, ainda que, na minha cabeça, eu só visse o mato alto engolindo a cidade. Nesses tempos de bio-sei-lá-o-quê, do eco-não-lhe-interessa e do meio-já-é-tarde-demais-ambiente, aquilo lá parecia mais um sítio intocado. A buzina do trem das quatro chegando agita a cidade inteira: vai lá Joana, chegaram os pescadores, vê se tem algum bom pra janta, e você também Maria, vai ajudar teu pai a carregar o isopor do picolé que ele tá cansado! É o acontecimento mais festejado e mais sonoro do dia. É uma alegria tão visceral, tão crua, que não consegui encontrar comparações palpáveis. Mas certo estive que a buzina, mesmo de longe, já provocava as emoções tão cruas quanto aqueles pães assando na padaria, bem perto da linha do trem e que de longe eu já sentia o cheiro.
Isaac N

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