Qual o seu lugar no mundo? O que é mesmo essa ideia chamada lugar?
Fossem essas questões retóricas...
mas nada é retórico quando as respostas estão vendadas, vedadas. Se pudesse
ilustrar uma dessas perguntas em uma pintura, eu faria um Saturno Devorando um Filho, devorando Isaacs, devorando as entranhas dessa personalidade inquieta,
que não identifica a diferença entre altura e profundidade, entre o côncavo e o
convexo, o sonho bom e o sonho ruim, o mar e o sertão, a minha cama alheia e a
cama alheia minha. E sobre essa pintura eu ainda poria uma tela opaca, ou um
cobertor fino, para mostrar dessa antropofagia tão somente as silhuetas, tal
qual o fazemos quando a própria alma é opaca: contornos escuros, a boca aberta,
as vísceras misturadas; e o lugar... e o lugar? Responda-me!
Perguntaram então: de onde você é,
eu respondi, daqui mesmo, e não acreditaram, e saturno devorava. Procurava
irrequieto a resposta para a pergunta cabulosa e in-de-ci-frá-vel: sou daqui
mesmo, juro; você não pertence a esse lugar, sinto muito.
Em outra latitude eu diria, SOU
DE LÁ, mas eu me sinto muito mais de cá do que de lá! Mas e se lá e cá forem,
no final ou no início, a MESMA coisa? Se não existir essa coisa, essa redução
tão absurda limitadora castradora e excludente?
Então eu pertenço ao lugar e ao
transporte e à estrada, como se fosse possível, como se fosse razão. Uma asa de
avião, um apartamento no oitavo andar, uma república estudantil, uma memória de
sal de lágrima e de textos milhares de textos trocados pelo celular, uma fresta
de janela na praia, um acampamento na beira do rio, pneus e lentes rumo ao
oeste e ventos ao leste enchendo um balão vermelho; mesmo que não existam mais
ou que nunca existiram. E assim os dentes ainda visceram e mastigam, mas não há
dor, nem mesmo nas cicatrizes, mas paz.
E não me digam que isso não faz
sentido, mas meu lugar sou eu. E eu - compungente - sou vários lugares.
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