João de barro era um menino pássaro igual a todos os outros
meninos passarinhos da redondeza. Braços grandes, pés pequenos, tudo no seu
lugar. Tinha uma tosse frequente, mas isso não era lá grande coisa; não
atrapalhava quando ele podia brincar com os outros joãos e marias dali, afinal
cada um deles também tinha algo característico: um era a asa quebrada, outro o
bico torto, um terceiro pardal mais franzino mal conseguia abrir o olho de
tanta remela. A maria mais amiga do nosso joão era muito rolinha: linda e
pequena, mas já um pouco corcunda de tanto abaixar o bico catando o milho do
chão.
E eles viviam assim, dia após dia, passarinhando o quanto
podiam. Sem o stress da vida confinada: já nasceram pobres, porém já nasceram
livres. Ele e os outros nem eram joãos de barro crescidos, mas por não terem
seus pais pássaros por perto, tiveram de construir sua própria casa de adobe imaginária
entre duas pilastras da Importante Avenida Afonso Pena, terra do lazer, do
ócio, terra das compras. Aproveitaram a marquise como teto e o bueiro como
banheiro e era ali onde morava a liberdade de joão de barro e de seus amigos.
Outros pássaros mais ricos, com os bicos endireitados e as
asas empertigadas, olhavam com desdém enquanto jogavam alpiste imaginário para a
mão grande e suja de joão. Ele aceitava de bom grado e sorria enquanto seu
remédio para a tosse de uso diário e contínuo fazia efeito. A maria corcunda
que dormia na cama ao lado usava outros remédios ainda mais fortes; devia ser
pior a dor daquela rolinha franzina e flaca.
Um dia inventaram os pássaros ricos de fazer uma
festa cujo tema era ‘contra a intolerância’ na frente da casa de joão, na
Importante Avenida Afonso Pena. A fila era grande para entrar numa imensa
gaiola: no mínimo um paradoxo para joão que não entendia custar tanto alpiste o
fato de ficar livre da liberdade.
Mas enfim, era um dia bom para ele e para os outros pois com
certeza não precisariam voar tão longe para conseguir qualquer alimento
regurgitado que fosse. Aí nosso pequeno se encheu de remédio para a tosse,
arrumou as penas, de olhos vermelhos pegou na mão pequena de maria e foram os
dois, tão altos quanto se possa imaginar, para a porta daquela gaiola. Eu ainda
vi a hora em que joão se perdeu de maria e, tentando pedir alpiste aos que
estavam na fila, só pode ter incomodado algum pássaro santo deus, alguma águia
de penas brancas e limpas, para terem começado a lhe perseguir. Aí eu acho que joão
meio que se perdeu dele mesmo também. Saiu rodopiando batendo as asas entre a
grade e a fila que seguia rente a esta, ninguém o tocava, ninguém o olhava
exceto para dele se desviar.
Eu que também estava naquela fila, vi maria do outro lado da
rua, encostada num poste apagado e apagada. Já ele passou por mim meio que de
raspão e voando sem rumo sempre esbarrando na grade enquanto dois papagaios-segurança o perseguiam. Aí foi quando ouvi alguém dizer: “olha só,
parece um passarinho quando a gente prende na gaiola e ele tenta desesperado
sair”.