O título desse texto, embora seja aparentemente um pouco
deprimente, não é sobre vazios e faltas. Talvez seja justamente o contrário, o
de encontrar sentido e preenchimentos para um minúsculo momento que vai do nada
ao nada, do zero que existia antes de nascer ao algo diferente do zero,
digamos, um novo zero, depois que a gente se vai.
Essa reflexão me bateu numa entrevista que tive com uma
pessoa que estava privada de liberdade há uns dias atrás. Estávamos só eu e ele e tínhamos a mesma idade, o que me chamou logo a atenção. Na
sala, uma cadeira de escola para cada um e uma mesa nos separando. Entre nós,
papéis onde eu anotava coisas que não eram ele, mas uma informação sobre ele
que só fazia sentido no mundo dos homens. “Diga-me seu nome, seu número de
identificação, onde corre o seu processo, o que houve nesse dia, você precisa
de alguma coisa?”.
E ele me dava respostas que só faziam sentido se
entendêssemos as coisas dos homens, sobre o tempo do homem, sobre a vida do
homem. Ele, preso, porque fez alguma coisa desaprovada por um homem, porque foi
assim que convencionaram os homens, porque seus números e dados – ficções
usadas para decidir sobre sua vida – disseram que ali ele deveria estar. Eu,
solto porque alguém me permitiu, porque foi assim que convencionaram os homens,
porque meus números e dados exclusivamente humanos me deram um rumo diferente
daquele que diante de mim se sentava na cadeirinha de escola, embora tivéssemos
nascido praticamente na mesma data há uns anos atrás.
Eu, filho da terra e da água que habitam esse lugarzinho há bilhões
de anos, pequenas partes agrupadas em uma probabilidade minúscula de acontecer,
mas que aconteceu. E justamente naquele dia estava eu diante dele, filho da
terra, meu irmão, partículas diferentes de água e terra reunidas para formar
outro alguém igual - embora diferente - de mim.
Às vezes me pergunto: por que não falamos sobre o tempo das
estrelas? Não nos esqueçamos para não perder a ternura jamais: para a natureza
éramos apenas eu e ele, duas cadeiras e uma mesa e todo o universo conspirando
para que no minúsculo momento marcado entre o nascimento e a morte, pudéssemos
ver isso tudo que se passa aqui fora – e aqui dentro. Entre o que vinha antes
do nada e o que virá depois do nada, existe uma coisa acontecendo para todos,
que é a chance de experimentar a magia e o inferno que é estar vivo.
Éramos nada há alguns anos atrás. Éramos possibilidades e
nos tornamos reais. E daqui a alguns anos, seremos apenas uma versão diferente
do nada, porque nossas partículas se tornarão outras coisas na dança maluca dessa
pequena esfera metálica que flutua sobre o vácuo.
E justamente por não falarmos tanto assim sobre o tempo das
estrelas é que estávamos diante do absurdo dessa existência infeliz em que uma
pessoa anda solta e outra, presa. Entre nós não havia diferença substancial: as
estrelas nos formaram igualzinho, nós nascemos iguaizinhos e vamos morrer para
virar mais ou menos a mesma coisa.
Eu não tenho condições de julgar as ações humanas, especialmente
as que o levaram até ali, e, se alguém acha que tem, tampouco me oponho. Creio
que no nosso atrasado jeito de viver é apenas mais um dos males a que nos
submetemos. Salvamos a consciência sacrificando existências. Sempre foi assim,
afinal, anda tudo muito mais errado no mundo dos humanos do que certo: nós
estamos simplesmente acabando com nossas chances de sobrevivência no planeta
vivendo uma vida injusta, ridícula e absurdamente esmagadora para outras pessoas
e espécies que compartilham a terra conosco. Não existe uma criança, uma flor,
uma formiga ou ornitorrinco que não esteja ameaçado por uma bomba nuclear, por
um rio derramando mercúrio ou por uma chaminé vomitando enxofre.
Então o que eu pude dizer para a pessoa sobre as coisas
humanas que o oprimiam? Profissionalmente, falei as coisas mundanas que tinha
que falar. Mas disse ainda: “aguente firme e seja paciente que há tempo para
ser várias coisas nessa vida, esse não precisa ser o seu fim, pois tudo é um
novo início”.
Foi o melhor que consegui falar para aliar o mundo humano ao
mundo da natureza, mostrar que o nosso minúsculo tempo de existência aqui na terra
é grande o suficiente para abraçar o mundo da natureza – que é muito maior que
a cabecinha dos homens.
Entre o nada e o nada pode acontecer tudo. E essa é a beleza
que vale pra mim, pra você e pra todos.