sábado, 4 de julho de 2020

O Pastor maremano.

Eu gosto de gente. Gente homem, mulher, crianças, bebês. Gente de brinquedo também dão conta, mas é claro que eu prefiro uma boa agarrada numa perna que se mexe e é quentinha. Eu adoro pernas de gente, sabe, sei lá, parece que, quando minha libido está a mil, as pernas dos humanos são ideais. Às vezes, me deparo com a perna do Nagib e me sobe aquele calor e eu imagino que é a Princesa ali, às vezes imagino que é o Bilota, não importa, pois eu também resolvo muito rápido, muitas vezes não dá nem tempo dele perceber, fecho os olhos e pá, já era. Às vezes levo uns chutes, noutras ele fica rindo de mim, eu não entendo, de verdade, mas eu sou feliz assim, não me julguem, só em pensar na Princesa ou no Bilota eu fico desse jeito. Às vezes eu fico assim também quando estou com fome e, pensando bem, coitado do Nagib, porque se tem uma coisa sobre mim é que eu estou sempre faminto. Bom, tem também aquelas vezes em que eu gosto de agarrar as pernas dele enquanto penso nos meus pirralhos, é como se elas fossem o próprio Hercules, meu filhote (agora você me lembrou que faz tempo que não o vejo, onde será que ele está?) ou um dos meninos do Bilota e logo me dá aquela vontade de cuidar, de lamber. Louco isso né? Também não sei explicar não, só acontece, é bem forte e eu gosto muito, não consigo nem me conter. Tem vezes que eu sei que é só uma perna mesmo, de gente humana. E ainda assim vale a pena lambê-la de vez em quando. Acho que eu sou meio esquisito, mas me perdoem, por favor, eu sou assim, é meio jeito!

Eu gosto de verdade de gente humana, normalmente eles me tratam bem e me dão quase tudo que eu quero e eu quero muito pouco, na verdade, um pedaço de carne só pra mim, um prato de ração só pra mim, um frango só pra mim, um bolo só pra mim e um biscoito só pra mim. E toda vida ficam: "Zeus, chega de comida, Zeus para de querer comer no prato do Nagib, Zeus, saia já de cima da mesa!". Tá, não fique aí pensando que eu sou só egoísta e bagunceiro, eu tenho muita fome e eu faço muita coisa, eu mereço. Olha, pensando bem, acho que minha fome só aumenta porque eu passo o dia vigiando a casa para não deixar ninguém entrar e isso dá um trabalhão, ficar latindo alto o tempo inteiro cansa!

Acho que aprendi a ser assim, faminto e barulhento, com meus pais e, mesmo que eu não me lembre deles, é assim que eu sinto! Toda vida quando um humano novo me vê pela primeira vez sempre diz: "Olha, um pastor maremano!". Bom, meu nome é Zeus, não é pastor maremano. E o Bilota é o Bilota, não é "vira-lata" como sempre dizem por aí. Os humanos que moram comigo concordam com isso, tanto que nunca me deixam faltar nada e sempre me tratam bem e vivem rindo das minhas coisas, não sei bem o porquê, mas por exemplo eles acham engraçado quando eu pego uma bola verde que o Nagib vive perdendo e eu vou lá e sempre busco pra ele. Dia desses eu até consegui pular o portão só para pegar a bola que o Nagib tinha acabado de perder! Eu corri com todas as minhas forças, atravessei o gramado, me agarrei na grade e lá em cima vi que tinha uma abertura mais larga que dava pra eu passar e passei! Sofri, mas peguei a bola do Nagib. Eu não sei porque ele brigou tanto comigo nesse dia. Mas também, coitado, eu acho que o Nagib não é tão feliz quanto eu, porque eu vejo ele sempre meio triste fazendo as mesmas coisas e solitário, acho que ele não sai muito, pelo menos ele sai menos que eu, que todo dia, no começo da manhã e quando o sol está se pondo, dou meu passeio. Tá, eu uso uma coleira, não é tão legal por causa disso, mas eu amo ainda assim e isso faz meu dia. É a melhor sensação! Não tem ração, não tem biscoito, não tem perna, não tem nada que me impeça de sair, eu até seguro meu cocô e meu xixi para coroar essa hora mágica. Posso dizer com segurança que sair de casa faz parte de mim. E além disso, lá fora eu consigo encontrar quase sempre o Bilota, porque ele mora depois da grade, do outro lado da rua e dorme debaixo da marquise do vizinho. Ele é meu amigo, tanto que eu o respeito e nunca quero a comida dele, mesmo que eu esteja com fome como eu sempre estou (acho que já disse isso né?). O Bilota não usa coleira como eu (não sei porque ele não usa) e é bem diferente de mim, mais magro, marrom. Tem sempre alguém que dá comida pra ele, mas eu acho que ninguém cuida dele como cuidam de mim não.  Outro dia vi uma pessoa o chutando na rua, não sei o que o Bilota fez, mas ele vive machucado, acho que briga muito, mas não comigo pelo menos, ele late pra mim e eu pra ele, quase sempre é assim: lato pra ele e pros filhotes dele que já estão quase do seu tamanho (por falar nisso, cadê o Hercules? Lembrei agora, nunca mais o vi).

Eu acho que o Nagib é mais novo que eu, ele não é tão grande quanto o pai nem quanto a mãe, acho que é adolescente, ele deve ter uns quinze anos de idade humana, pelo menos é o que eu acho. Ele me lembra muito meu filhote, o Hercules, que era acanhado, meio fracote também, mas muito esperto. Não sei quantos anos na idade humana significam o infinito, mas no tempo dos cachorros, qualquer dia sem meu filho parece isso: uma eternidade. Eu às vezes me esqueço, mas depois me pego lembrando dele correndo no gramado tão feliz, nossa, quanto tempo faz isso? A última vez que o vi, um humano estranho estava com ele nos braços e eu vi quando ele entregou algo que eu acho que era dinheiro para o pai do Nagib. Eu lati muito, mas não teve jeito, o humano levou o Hercules embora e meu coração ficou destroçado.

Acho que eu nunca mais confiei tanto no pai do Nagib depois disso. Mas, ainda assim eu amo muito o Nagib, ele é o máximo, eu só amo mais que ele o meu Hercules, o Bilota e a Princesa. Tá bom, hoje em primeiro lugar, quem eu amo mais do que tudo quem é a Princesa. Sempre que ela passa aqui na frente, me deixa louco, eu até esqueço do que eu estou fazendo e me ponho a latir desesperadamente ao vê-la passar em frente ao portão da nossa casa. Ela também tem coleira como eu e tem sempre um lacinho vermelho pequeno na cabeça, e também tem o humano que cuida dela, só que mais velho, mas que parece gostar muito bem dela. Vivem chamando-a de 'poodle', mas pra mim ela é só a Princesa. Eu não sei que perfume ela usa, mas tem alguns dias que eu simplesmente não me seguro, eu enlouqueço, lato muito mesmo, eu não consigo explicar, só sinto sabe? A Princesa é a coisa mais linda desse mundo, mais até que o Bilota, e olhe que eu também sinto essa coisa com o Bilota, mas a Princesa tem um cheiro...

Mas eu vou contar o que aconteceu naquele dia, pelo menos vou contar o que eu me lembro. Nagib estava dormindo e já era bem tarde e muito quente mesmo,  tanto que eu presumi que era um dos dias que eles chamam de domingo. A Princesa tinha acabado de passar pelo portão e ela tava com aquele cheiro do cio. Eu fiquei louco. Lati muito para Nagib sair de casa, me colocasse a corda na coleira e me abrisse o portão, mesmo que não fosse a hora ainda. E olhe que eu nem estava com vontade de fazer cocô ainda e tão pouco tinha terminado de comer minha ração do almoço. Mas Princesa, ah meu bom deus canino, eu não me segurei. Lembrei daquela grade mais larga, lá em cima do portão, a que eu tinha conseguido vencer uns dias atrás, corri, atravessei o gramado, subi e: livre! Livre para a Princesa! Eu ainda ouvi de longe alguém gritando meu nome: "Zeus, Zeus, volta aqui!" mas confesso que eu não queria saber de mais nada, meu coração estava acelerado, metade porque eu estava livre, metade porque eu queria sentir Princesa e aquele cheiro dela, meu deus que cheiro era aquele! E assim, meu coração pulsando como nunca, eu estava cego de paixão: pela rua desamarrado, como sempre quisera fazer, pela delícia que era sentir todos aquele cheiros e sabores tão rica e tão suja rua (que delícia meu deus), e por Princesa, que me chamava com seu odor, me dizia: “vem meu Zeus”.

Eu corri muito, confiando no meu olfato, mas de alguma forma, quanto mais eu corria, menos eu sentia o seu cheiro. Eu andei bastante e, em algum momento, já nem sabia mais como voltar para casa nem senti Princesa. Acho que ela deve ter se escondido em algum lugar ou será que eu corri para a direção contrária? Eu realmente não me lembro o que aconteceu, porque depois de alguns quarteirões e uns parques no caminho, enquanto eu parava para descansar, um carro preto com vidros fumê parou do meu lado. Na janela eu notei que havia um humano homem na direção e uma humana fêmea na parte de trás. Ambos abaixaram o vidro e foi quando eu percebi que ela tinha um biscoito de ração na mão. Vocês sabem, eu tenho muita fome e não resisti: fui atrás do biscoito, ainda mais porque eles pareciam estar me chamando, era parecido como o Nagib faz quando me chama. “Cachorro, cachorrinho, garotão”, nem sei o que isso tudo significa, mas parece que eu sou um deles ou todos eles. Eu sempre tive quase certeza que eu era mesmo Zeus, mas mesmo assim saltei para dentro do carro que tinha agora as portas abertas e, meu deus, aquele biscoito estava mesmo delicioso. A mulher me fez um carinho nas orelhas e eu amo carinho nas orelhas. Amo mais ainda os biscoitos que ela tinha em uma sacola no seu colo, comi-os com pressa, tanto que fiquei bem calmo e relaxado. O carro andou.

E foi assim que eu cheguei aqui. Eu só queria encontrar Princesa, mas agora eu não vejo nem o Nagib, nem Princesa, nem Pilota, nem mesmo o pai do Nagib que sumiu com o Hercules dia desses. Eu só vejo pessoas estranhas, todas com um certo aspecto sombrio e de maldade. Vi quando uma pessoa, um homem, todo vestido de preto, chegou para alguém que parece ser o dono da casa e disse: "Senhor Presidente, temos que resolver um assunto urgente", ao que este o respondeu com um bocado de palavras que eu não sei o que significavam, mas que eu lembro que eram algo do tipo: “viado escroto, vai usar seu ânus para excremento, prefiro ter um filho ladrão a um filho viado”. Depois ele ficou falando que “índio era peso morto e umas arrobas a menos não fariam falta”. Ouvi ainda quando ele disse: “E daí que vai morrer gente? Todo mundo morre!” Eu realmente não sei o que são essas palavras, o Nagib pode ser meio duro comigo, mas eu nunca fui tratado como aquelas pessoas a quem o senhor mais velho “O Presidente” se referia. A única coisa que eu entendi de verdade foi quando ele disse: “Quem procura osso é cachorro”. Bom, nisso eu concordei, mas não entendi muito bem.

A mulher que me deu biscoito, eu acho que ela não gostava de cachorros. Ontem mesmo eu vi o Pilota pelo vidro da porta, na rua, como sempre faminto e marrom. Acho que ele é marrom de sujo, na verdade, ou então um pouco mais marrom porque não toma banho. Ela passou por ele e o tratou mal, tão mal que me lembrou alguns humanos que vez por outra chutavam o Pilota lá na minha rua. De qualquer forma, eu não entendi o que eu fazia ali. Meu nome é Zeus, mas insistiam em me chamar de Augusto! Eu não precisava de outra casa, o Pilota sim, mas ele não teve chance. Às vezes eu acho que os humanos fazem menos de mim, afinal por que trocaram meu nome que, até onde eu sei, estava escrito na minha coleira? E por que eu tinha que tirar tantas fotos e ser tão paparicado, me chamando de zero cinco, zero seis, pequeno príncipe... Eu sou o Zeus, amigo do Nagib, do Pilota, pai do Hercules, gosto de carne moída, bolo e biscoito, é só isso! Eu queria ficar com a Princesa, mas não queria ser príncipe.

Ainda bem que o pesadelo acabou logo. O Nagib e o pai dele (nós temos nossas diferenças, você sabe), ficaram sabendo que eu estava por aqui, não sei como, e vieram me resgatar. O homem que chamavam de Senhor Presidente não deu a mínima, parece que ele tinha pelo menos uns dez humanos vestidos de farda verde-oliva para receber a toda hora, e todos o cercavam e o bajulavam, como eu mesmo faço com algum humano que tem bolo, carne ou biscoito na mão. Bom, melhor assim, com certeza eu prefiro minha vida de Zeus sem sobrenome do que aquela de Augusto com sobrenome de gente ruim.