quinta-feira, 7 de maio de 2020

Uma geração que falhou.




Ultimamente as coisas não vão bem. Não vão bem no plano pessoal e no plano geral, se é que se pode separar tais categorias. Quando eu era criança, acreditava que dava para dividir, que existiam duas partes de uma percepção sobre a vida: aquela referente aos rumos do mundo, do país, da comunidade, da família e dos outros em geral, e aquela que me tocava internamente, meus medos, minhas falhas, minhas conquistas, meus erros. Eu nunca imaginava que elas pudessem se juntar e formar uma espécie de expectativa única da experiência terrena, ainda mais vivendo em uma cidade tão pacata e isolada como era a Caicó dos anos 90.

Hoje eu me pego pensando nos eventos trágicos que testemunhei ainda criança como a morte dos mamonas assassinas, acidentes aéreos, a desvalorização do dólar, Ayrton Senna, a derrota na copa de 98, o 11 de setembro. Todos foram, claro, muito comoventes, mas eu achava difícil me relacionar com eles diretamente, talvez porque fosse muito novo pra entender, talvez porque o Brasil do interior fosse (e ainda é) um local bem diferente do que chamavam de Brasil. Ali, o anonimato é o nome verdadeiro de todos os Joãos e Marias batizados no chão rachado da seca e do descaso. De tanto esquecimento, era facilmente possível viver várias vidas fugitivas no interior do Nordeste sem se preocupar nunca em ser encontrado, mas suponho que até para o foragido mais procurado, o interior do meu Caicó era pena mais dolorosa que prisão no Brasil que passava na televisão. Muito quente, muito longe, muito pobre, muito nada.

Mas a gente vai crescendo e deixando de ser sonhador, ou ao menos trocando os sonhos por uns mais possíveis. Se nos chamavam de geração do futuro, precursora da era da tecnologia, se diziam que seríamos capazes de revolucionar o mundo, tudo isso ficou para trás. A tarefa de minha geração de entregar um mundo melhor está sendo indiscriminadamente sepultada dentro dos caixões enfileirados nas valas comuns.

A realidade da vida adulta conseguiu juntar as duas expectativas em uma só, enfim; suponho que é o fim de uma das magias de ser criança. A minha felicidade, afinal, passa pela felicidade do próximo, do país, do mundo, da comunidade, da família e dos outros em geral. E hoje não está dando para encontrar felicidade em um país onde se cultua a tortura, onde o sofrimento da morte pela obra da ignorância humana é relevado sem pudor, quiçá exaltado, onde a vida da pessoa jurídica é mais importante que a da física. Não dá para planejar e executar os projetos pessoais em um país arrasado por uma doença: a doença do mau-caratismo. As coisas não vão bem no plano pessoal e no plano geral porque eles são uma coisa só, a culpa de não sermos pessoas melhores é toda nossa.


sábado, 2 de maio de 2020

O Himalaia invisível em cada um de nós.

Fonte: Site Folha de S. Paulo, 9 de abril de 2020.

Indianos conseguem enxergar o Himalaia pela primeira vez em mais de 30 anos”. Essa era a manchete curta, mas chamativa. A gente aprendeu que informações curtas e chamativas fazem mais sucesso ao ponto de termos praticamente abandonado o hábito de ler grandes textos ou fazer grandes reflexões amparadas em pesquisas robustas. Talvez o fato de não enxergar o Himalaia esteja relacionado com o fato de não enxergarmos mais muita coisa nessa que chamam de era da informação. Mas apenas talvez, esse não é o tema desse texto, eu quero mais é focar na cegueira daqueles que nunca viram o Himalaia, incluindo eu e você. 

Eu e você nunca enxergamos as montanhas mais altas do mundo porque nunca estivemos lá, segundo consta. Mas o que dizer do habitante de Jalandhar, por exemplo, que mora a 230km da maior cadeia montanhosa do planeta, dos 100 maiores picos do planeta, todos acima de 7200m de altitude, nada menos que o local chamado de “teto do mundo”? Imagine a cena: um belo dia você olha pela janela de sua casa e o que era o céu de fumaça se convertera em um imenso paredão cujos cumes gelados coroam uma majestosa e inimaginável natureza distante poucos metros do seu quintal. Seria como acordar um dia e tocar suas guelras, embora não saiba nadar, ou abrir suas asas longas e fortes e não saiba voar. É como se todos nós fôssemos Usain Bolt’s, mas as pernas só usássemos para apertar um pedal após o outro, num fatigante exercício de repetição enfadonha e mortífera do dia a dia que o sistema nos obriga; engrenagens humanas ao estilo Charles Chaplin do século XXI. Se parar para pensar bem, a gente é mesmo capaz disso, na verdade, essa coisa da autossabotagem e também da autocomiseração: todo mundo quer mudar o mundo, mas que comece pelo outro.

Mas, sem falar de asas ou guelras ou velocistas de olimpíadas, trazendo para um universo mais palpável, como imaginar que qualquer indiano de Jalandhar com menos de 30 anos nunca conseguiu enxergar o seu vizinho imponente simplesmente porque a poluição não o permitia? 

Talvez poluição seja tudo isso que nós fazemos conosco: a nossa submissão ao nosso mundo colonizado, nossa cegueira deliberada frente ao outro, à absurda falta de consciência ambiental porque cremos ser infinitos todos os tempos e matérias, todos os espaços e tudo mesmo, sem exceção. Nunca se produziu tanta informação, tanta pesquisa e, paradoxalmente, nunca enfrentamos tamanha onda de ignorância que anuvia nosso pensar, nosso jeito de viver, de se relacionar, de ser, enfim. Em uma pandemia, até os números de mortes e vida dividem espaço com os números de uma economia que supostamente foi feita para permitir uma melhor gestão disso mesmo, da vida. É o outro que está morrendo, tanto faz. “E daí?”, diria alguém sobre as milhares de vítimas que se amontoam no país onde a ignorância tem um propósito claro de perpetuação do poder dos abutres sedentos por mais e mais dinheiro, mais poluição. Paciência, cada um tem a fumaça que merece.

Não me estranha, na verdade, que aqueles jovens não conheçam as montanhas, tanto quanto eu e você. Não estamos preparados para enxergar o Himalaia que há em cada um de nós que é o amor, a compaixão e a certeza única de que dessa vida nada se leva senão ela própria. A cegueira sempre foi deliberada.