sábado, 2 de maio de 2020

O Himalaia invisível em cada um de nós.

Fonte: Site Folha de S. Paulo, 9 de abril de 2020.

Indianos conseguem enxergar o Himalaia pela primeira vez em mais de 30 anos”. Essa era a manchete curta, mas chamativa. A gente aprendeu que informações curtas e chamativas fazem mais sucesso ao ponto de termos praticamente abandonado o hábito de ler grandes textos ou fazer grandes reflexões amparadas em pesquisas robustas. Talvez o fato de não enxergar o Himalaia esteja relacionado com o fato de não enxergarmos mais muita coisa nessa que chamam de era da informação. Mas apenas talvez, esse não é o tema desse texto, eu quero mais é focar na cegueira daqueles que nunca viram o Himalaia, incluindo eu e você. 

Eu e você nunca enxergamos as montanhas mais altas do mundo porque nunca estivemos lá, segundo consta. Mas o que dizer do habitante de Jalandhar, por exemplo, que mora a 230km da maior cadeia montanhosa do planeta, dos 100 maiores picos do planeta, todos acima de 7200m de altitude, nada menos que o local chamado de “teto do mundo”? Imagine a cena: um belo dia você olha pela janela de sua casa e o que era o céu de fumaça se convertera em um imenso paredão cujos cumes gelados coroam uma majestosa e inimaginável natureza distante poucos metros do seu quintal. Seria como acordar um dia e tocar suas guelras, embora não saiba nadar, ou abrir suas asas longas e fortes e não saiba voar. É como se todos nós fôssemos Usain Bolt’s, mas as pernas só usássemos para apertar um pedal após o outro, num fatigante exercício de repetição enfadonha e mortífera do dia a dia que o sistema nos obriga; engrenagens humanas ao estilo Charles Chaplin do século XXI. Se parar para pensar bem, a gente é mesmo capaz disso, na verdade, essa coisa da autossabotagem e também da autocomiseração: todo mundo quer mudar o mundo, mas que comece pelo outro.

Mas, sem falar de asas ou guelras ou velocistas de olimpíadas, trazendo para um universo mais palpável, como imaginar que qualquer indiano de Jalandhar com menos de 30 anos nunca conseguiu enxergar o seu vizinho imponente simplesmente porque a poluição não o permitia? 

Talvez poluição seja tudo isso que nós fazemos conosco: a nossa submissão ao nosso mundo colonizado, nossa cegueira deliberada frente ao outro, à absurda falta de consciência ambiental porque cremos ser infinitos todos os tempos e matérias, todos os espaços e tudo mesmo, sem exceção. Nunca se produziu tanta informação, tanta pesquisa e, paradoxalmente, nunca enfrentamos tamanha onda de ignorância que anuvia nosso pensar, nosso jeito de viver, de se relacionar, de ser, enfim. Em uma pandemia, até os números de mortes e vida dividem espaço com os números de uma economia que supostamente foi feita para permitir uma melhor gestão disso mesmo, da vida. É o outro que está morrendo, tanto faz. “E daí?”, diria alguém sobre as milhares de vítimas que se amontoam no país onde a ignorância tem um propósito claro de perpetuação do poder dos abutres sedentos por mais e mais dinheiro, mais poluição. Paciência, cada um tem a fumaça que merece.

Não me estranha, na verdade, que aqueles jovens não conheçam as montanhas, tanto quanto eu e você. Não estamos preparados para enxergar o Himalaia que há em cada um de nós que é o amor, a compaixão e a certeza única de que dessa vida nada se leva senão ela própria. A cegueira sempre foi deliberada.

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