sábado, 4 de julho de 2020

O Pastor maremano.

Eu gosto de gente. Gente homem, mulher, crianças, bebês. Gente de brinquedo também dão conta, mas é claro que eu prefiro uma boa agarrada numa perna que se mexe e é quentinha. Eu adoro pernas de gente, sabe, sei lá, parece que, quando minha libido está a mil, as pernas dos humanos são ideais. Às vezes, me deparo com a perna do Nagib e me sobe aquele calor e eu imagino que é a Princesa ali, às vezes imagino que é o Bilota, não importa, pois eu também resolvo muito rápido, muitas vezes não dá nem tempo dele perceber, fecho os olhos e pá, já era. Às vezes levo uns chutes, noutras ele fica rindo de mim, eu não entendo, de verdade, mas eu sou feliz assim, não me julguem, só em pensar na Princesa ou no Bilota eu fico desse jeito. Às vezes eu fico assim também quando estou com fome e, pensando bem, coitado do Nagib, porque se tem uma coisa sobre mim é que eu estou sempre faminto. Bom, tem também aquelas vezes em que eu gosto de agarrar as pernas dele enquanto penso nos meus pirralhos, é como se elas fossem o próprio Hercules, meu filhote (agora você me lembrou que faz tempo que não o vejo, onde será que ele está?) ou um dos meninos do Bilota e logo me dá aquela vontade de cuidar, de lamber. Louco isso né? Também não sei explicar não, só acontece, é bem forte e eu gosto muito, não consigo nem me conter. Tem vezes que eu sei que é só uma perna mesmo, de gente humana. E ainda assim vale a pena lambê-la de vez em quando. Acho que eu sou meio esquisito, mas me perdoem, por favor, eu sou assim, é meio jeito!

Eu gosto de verdade de gente humana, normalmente eles me tratam bem e me dão quase tudo que eu quero e eu quero muito pouco, na verdade, um pedaço de carne só pra mim, um prato de ração só pra mim, um frango só pra mim, um bolo só pra mim e um biscoito só pra mim. E toda vida ficam: "Zeus, chega de comida, Zeus para de querer comer no prato do Nagib, Zeus, saia já de cima da mesa!". Tá, não fique aí pensando que eu sou só egoísta e bagunceiro, eu tenho muita fome e eu faço muita coisa, eu mereço. Olha, pensando bem, acho que minha fome só aumenta porque eu passo o dia vigiando a casa para não deixar ninguém entrar e isso dá um trabalhão, ficar latindo alto o tempo inteiro cansa!

Acho que aprendi a ser assim, faminto e barulhento, com meus pais e, mesmo que eu não me lembre deles, é assim que eu sinto! Toda vida quando um humano novo me vê pela primeira vez sempre diz: "Olha, um pastor maremano!". Bom, meu nome é Zeus, não é pastor maremano. E o Bilota é o Bilota, não é "vira-lata" como sempre dizem por aí. Os humanos que moram comigo concordam com isso, tanto que nunca me deixam faltar nada e sempre me tratam bem e vivem rindo das minhas coisas, não sei bem o porquê, mas por exemplo eles acham engraçado quando eu pego uma bola verde que o Nagib vive perdendo e eu vou lá e sempre busco pra ele. Dia desses eu até consegui pular o portão só para pegar a bola que o Nagib tinha acabado de perder! Eu corri com todas as minhas forças, atravessei o gramado, me agarrei na grade e lá em cima vi que tinha uma abertura mais larga que dava pra eu passar e passei! Sofri, mas peguei a bola do Nagib. Eu não sei porque ele brigou tanto comigo nesse dia. Mas também, coitado, eu acho que o Nagib não é tão feliz quanto eu, porque eu vejo ele sempre meio triste fazendo as mesmas coisas e solitário, acho que ele não sai muito, pelo menos ele sai menos que eu, que todo dia, no começo da manhã e quando o sol está se pondo, dou meu passeio. Tá, eu uso uma coleira, não é tão legal por causa disso, mas eu amo ainda assim e isso faz meu dia. É a melhor sensação! Não tem ração, não tem biscoito, não tem perna, não tem nada que me impeça de sair, eu até seguro meu cocô e meu xixi para coroar essa hora mágica. Posso dizer com segurança que sair de casa faz parte de mim. E além disso, lá fora eu consigo encontrar quase sempre o Bilota, porque ele mora depois da grade, do outro lado da rua e dorme debaixo da marquise do vizinho. Ele é meu amigo, tanto que eu o respeito e nunca quero a comida dele, mesmo que eu esteja com fome como eu sempre estou (acho que já disse isso né?). O Bilota não usa coleira como eu (não sei porque ele não usa) e é bem diferente de mim, mais magro, marrom. Tem sempre alguém que dá comida pra ele, mas eu acho que ninguém cuida dele como cuidam de mim não.  Outro dia vi uma pessoa o chutando na rua, não sei o que o Bilota fez, mas ele vive machucado, acho que briga muito, mas não comigo pelo menos, ele late pra mim e eu pra ele, quase sempre é assim: lato pra ele e pros filhotes dele que já estão quase do seu tamanho (por falar nisso, cadê o Hercules? Lembrei agora, nunca mais o vi).

Eu acho que o Nagib é mais novo que eu, ele não é tão grande quanto o pai nem quanto a mãe, acho que é adolescente, ele deve ter uns quinze anos de idade humana, pelo menos é o que eu acho. Ele me lembra muito meu filhote, o Hercules, que era acanhado, meio fracote também, mas muito esperto. Não sei quantos anos na idade humana significam o infinito, mas no tempo dos cachorros, qualquer dia sem meu filho parece isso: uma eternidade. Eu às vezes me esqueço, mas depois me pego lembrando dele correndo no gramado tão feliz, nossa, quanto tempo faz isso? A última vez que o vi, um humano estranho estava com ele nos braços e eu vi quando ele entregou algo que eu acho que era dinheiro para o pai do Nagib. Eu lati muito, mas não teve jeito, o humano levou o Hercules embora e meu coração ficou destroçado.

Acho que eu nunca mais confiei tanto no pai do Nagib depois disso. Mas, ainda assim eu amo muito o Nagib, ele é o máximo, eu só amo mais que ele o meu Hercules, o Bilota e a Princesa. Tá bom, hoje em primeiro lugar, quem eu amo mais do que tudo quem é a Princesa. Sempre que ela passa aqui na frente, me deixa louco, eu até esqueço do que eu estou fazendo e me ponho a latir desesperadamente ao vê-la passar em frente ao portão da nossa casa. Ela também tem coleira como eu e tem sempre um lacinho vermelho pequeno na cabeça, e também tem o humano que cuida dela, só que mais velho, mas que parece gostar muito bem dela. Vivem chamando-a de 'poodle', mas pra mim ela é só a Princesa. Eu não sei que perfume ela usa, mas tem alguns dias que eu simplesmente não me seguro, eu enlouqueço, lato muito mesmo, eu não consigo explicar, só sinto sabe? A Princesa é a coisa mais linda desse mundo, mais até que o Bilota, e olhe que eu também sinto essa coisa com o Bilota, mas a Princesa tem um cheiro...

Mas eu vou contar o que aconteceu naquele dia, pelo menos vou contar o que eu me lembro. Nagib estava dormindo e já era bem tarde e muito quente mesmo,  tanto que eu presumi que era um dos dias que eles chamam de domingo. A Princesa tinha acabado de passar pelo portão e ela tava com aquele cheiro do cio. Eu fiquei louco. Lati muito para Nagib sair de casa, me colocasse a corda na coleira e me abrisse o portão, mesmo que não fosse a hora ainda. E olhe que eu nem estava com vontade de fazer cocô ainda e tão pouco tinha terminado de comer minha ração do almoço. Mas Princesa, ah meu bom deus canino, eu não me segurei. Lembrei daquela grade mais larga, lá em cima do portão, a que eu tinha conseguido vencer uns dias atrás, corri, atravessei o gramado, subi e: livre! Livre para a Princesa! Eu ainda ouvi de longe alguém gritando meu nome: "Zeus, Zeus, volta aqui!" mas confesso que eu não queria saber de mais nada, meu coração estava acelerado, metade porque eu estava livre, metade porque eu queria sentir Princesa e aquele cheiro dela, meu deus que cheiro era aquele! E assim, meu coração pulsando como nunca, eu estava cego de paixão: pela rua desamarrado, como sempre quisera fazer, pela delícia que era sentir todos aquele cheiros e sabores tão rica e tão suja rua (que delícia meu deus), e por Princesa, que me chamava com seu odor, me dizia: “vem meu Zeus”.

Eu corri muito, confiando no meu olfato, mas de alguma forma, quanto mais eu corria, menos eu sentia o seu cheiro. Eu andei bastante e, em algum momento, já nem sabia mais como voltar para casa nem senti Princesa. Acho que ela deve ter se escondido em algum lugar ou será que eu corri para a direção contrária? Eu realmente não me lembro o que aconteceu, porque depois de alguns quarteirões e uns parques no caminho, enquanto eu parava para descansar, um carro preto com vidros fumê parou do meu lado. Na janela eu notei que havia um humano homem na direção e uma humana fêmea na parte de trás. Ambos abaixaram o vidro e foi quando eu percebi que ela tinha um biscoito de ração na mão. Vocês sabem, eu tenho muita fome e não resisti: fui atrás do biscoito, ainda mais porque eles pareciam estar me chamando, era parecido como o Nagib faz quando me chama. “Cachorro, cachorrinho, garotão”, nem sei o que isso tudo significa, mas parece que eu sou um deles ou todos eles. Eu sempre tive quase certeza que eu era mesmo Zeus, mas mesmo assim saltei para dentro do carro que tinha agora as portas abertas e, meu deus, aquele biscoito estava mesmo delicioso. A mulher me fez um carinho nas orelhas e eu amo carinho nas orelhas. Amo mais ainda os biscoitos que ela tinha em uma sacola no seu colo, comi-os com pressa, tanto que fiquei bem calmo e relaxado. O carro andou.

E foi assim que eu cheguei aqui. Eu só queria encontrar Princesa, mas agora eu não vejo nem o Nagib, nem Princesa, nem Pilota, nem mesmo o pai do Nagib que sumiu com o Hercules dia desses. Eu só vejo pessoas estranhas, todas com um certo aspecto sombrio e de maldade. Vi quando uma pessoa, um homem, todo vestido de preto, chegou para alguém que parece ser o dono da casa e disse: "Senhor Presidente, temos que resolver um assunto urgente", ao que este o respondeu com um bocado de palavras que eu não sei o que significavam, mas que eu lembro que eram algo do tipo: “viado escroto, vai usar seu ânus para excremento, prefiro ter um filho ladrão a um filho viado”. Depois ele ficou falando que “índio era peso morto e umas arrobas a menos não fariam falta”. Ouvi ainda quando ele disse: “E daí que vai morrer gente? Todo mundo morre!” Eu realmente não sei o que são essas palavras, o Nagib pode ser meio duro comigo, mas eu nunca fui tratado como aquelas pessoas a quem o senhor mais velho “O Presidente” se referia. A única coisa que eu entendi de verdade foi quando ele disse: “Quem procura osso é cachorro”. Bom, nisso eu concordei, mas não entendi muito bem.

A mulher que me deu biscoito, eu acho que ela não gostava de cachorros. Ontem mesmo eu vi o Pilota pelo vidro da porta, na rua, como sempre faminto e marrom. Acho que ele é marrom de sujo, na verdade, ou então um pouco mais marrom porque não toma banho. Ela passou por ele e o tratou mal, tão mal que me lembrou alguns humanos que vez por outra chutavam o Pilota lá na minha rua. De qualquer forma, eu não entendi o que eu fazia ali. Meu nome é Zeus, mas insistiam em me chamar de Augusto! Eu não precisava de outra casa, o Pilota sim, mas ele não teve chance. Às vezes eu acho que os humanos fazem menos de mim, afinal por que trocaram meu nome que, até onde eu sei, estava escrito na minha coleira? E por que eu tinha que tirar tantas fotos e ser tão paparicado, me chamando de zero cinco, zero seis, pequeno príncipe... Eu sou o Zeus, amigo do Nagib, do Pilota, pai do Hercules, gosto de carne moída, bolo e biscoito, é só isso! Eu queria ficar com a Princesa, mas não queria ser príncipe.

Ainda bem que o pesadelo acabou logo. O Nagib e o pai dele (nós temos nossas diferenças, você sabe), ficaram sabendo que eu estava por aqui, não sei como, e vieram me resgatar. O homem que chamavam de Senhor Presidente não deu a mínima, parece que ele tinha pelo menos uns dez humanos vestidos de farda verde-oliva para receber a toda hora, e todos o cercavam e o bajulavam, como eu mesmo faço com algum humano que tem bolo, carne ou biscoito na mão. Bom, melhor assim, com certeza eu prefiro minha vida de Zeus sem sobrenome do que aquela de Augusto com sobrenome de gente ruim.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Fogueiras apagadas do São João.

Hoje é dia de São João do ano de 2020. Um dia sem fogueiras, sem abraços, repleto de falta.

Fosse em outros tempos, uma centelha bastaria para acender o fogo vivo que é a lembrança de um tempo de fartura, remissão direta à rica colheita do milho, à curta bonança das chuvas do semiárido, ao sincretismo que toma emprestado da religião seu nome, mas se engancha mesmo nos pecados da música, do suor e da bebida. As memórias da infância chegam a galope e nos levam montados em trajes típicos, dançando quadrilha e respirando fumaça de fogueira a noite inteira, enquanto canjicas, pamonhas e milhos assados revezam entre as bocas sem freio e sem dó. Lembranças e saudades que se traduzem em alegria e despertam na gente aqueles sorrisos bobos como de quem está apaixonado, lembrando da pessoa amada no meio de uma tarde nublada. O São João é um desses patrimônios que a gente pode usar como retrato de humanidade, para não deixar a gente esquecer que vale a pena estar vivo.

Mas para nós, hoje, há esse estalo. Um branco, uma quebra no tijolo. Uma realidade dura que tarda a passar e deixará lembranças, mas não deixará saudades. Uma faca cega que, ao rasgar feridas abertas, expôs o nosso pus como sociedade: desigualdade cruel e persistente que é a verdadeira assassina de milhares de pessoas todo dia. Não é que estejamos enfrentando só uma doença do pulmão, é uma doença da iniquidade e do descuido, que se soma a todas às nossas outras deficiências, defeitos e maldades.

A sensação que fica é de que essa falta corrói, desanima, enluta a mais clara luz do dia. Parece que a fogueira apagada do São João se reflete na frieza de coração peito adentro: parece que ele está assim mesmo, apagado, sem sentimentos, fazendo-nos menos vivos, menos alegres. Ao nos negarem os abraços e os beijos, parece que vai batendo devagarzinho, como se lhe faltasse uma quadrilha, um forró para acelerar, como se lhe faltasse fogo. Para muitos, falta até mesmo compaixão.

Na verdade, a falta de calor no coração é a única que pode matar de desamor um apaixonado e, principalmente, de frio um nordestino. 

terça-feira, 9 de junho de 2020

A História Privada da Baía dos Golfinhos.



Antes de ir, sempre olho a maré.

Não, eu não sou uma pessoa do mar; nasci e me criei em um chão rachado de muito calor e pouca água, tanto que a chuva sempre foi o mais esperado e desejado dos eventos. Como as nuvens que a traziam, a chuva costumava vir carregada de emoções, fosse pela constante repetição das minhas tias e de meu avô sobre sua importância para as lavouras, fosse por sua estrondosa celebração entoada de gritos de alegria e emoção quando a cada inverno ela se mostrava, ainda que escassa, fosse pelas maravilhas que ela proporcionava visivelmente, como um bom banho nas biqueiras das casas de toda a cidade ou a aventura tão única de acompanhar objetos serem carregados pelas torrentes que se formavam nas ruas onde durante meses só se via aquele vapor que fazia tremer as imagens que se lhe atravessavam. É engraçado, mas embora a chuva seja um evento natural que, como todos os outros, pode ser tão danoso quanto necessário, para o seridoense ela sempre é bem vinda. Você vai ter que procurar muito até encontrar algum sertanejo que caçoe da chuva e, se encontrar, pode apostar que tal desgosto terá sido momentâneo, passageiro ou ingênuo, como aquelas birras infantis que toleramos por um instante com sofreguidão em troca da alegria e do sorriso quase que perene no rosto das crianças que amamos.

Mas não é bem sobre a chuva que queria falar, mas sim sobre as marés que tenho que olhar antes de ir. Pois bem, não há marés no sertão e isso se reflete muito sobre minha relação com o oceano: o vislumbre mais amoroso que tinha do mar era imaginar como seria caso um cataclisma elevasse as águas do Atlântico e Caicó fosse, enfim, uma cidade praiana, de preferência a nova capital de todo o Nordeste. Esse desejo sempre foi declarado e, ainda hoje, quando tenho que prestar atenção na altura da maré para chegar ao meu lugar preferido no mundo, não deixo de imaginar que ele está intrinsecamente dentro dos limites da terra natal, como se muitos quilômetros fossem nada, como se fosse finalmente uma daquelas praias que eu imaginava na beira do açude Itans, ou na baixa do Rio Seridó, sempre tão secos, mas sempre evocativos de uma grandeza única do Sertão que, na imaginação de quem sonha acordado, um dia viraria mar. 

Ali, onde inequivocamente constato que sou do sertão e não do mar, esse meu lugar favorito no mundo, é a Baía dos Golfinhos, uma pequena faixa de terra parcialmente isolada onde só se alcança pelo caminhar da praia a partir do centro da vila de Pipa. Para se chegar lá, é preciso observar a maré, pois não se consegue atravessar as rochas com as águas elevadas e, ao mesmo tempo, é preciso pensar no tempo em que pretende ficar lá, visto que a momentânea abertura com o resto das coisas lá fora tem hora marcada para se encerrar. Talvez essa tensão entre ser possível ou impossível a depender da hora do dia tenha muito a ver com o amor: tem horas que você ama alguém com toda ternura, mas ela simplesmente está fechada em si, perfeitamente arredia e bela servindo nada mais que a si mesma com suas manias e trejeitos. O amor é como esse abrir e fechar das marés na praia: se for muito, estraga, se for pouco, morre de inanição. E esses mundos são igualmente lindos, esteja eu lá ou não, como a Baía, que noite e dia está lá, há milênios, acompanhando a água subir e descer, o sol lhe queimar a areia e a lua a lhe beijar em seguida, como se fosse para sarar de todo mal.

Mas meu carinho pela Baía tem todo um significado particular. Para mim, ela é importante não só pelo que lá aconteceu, mas também pelo que pode vir a acontecer - ou até não acontecer. Diferente de alguém que, por exemplo, admira as praias da Normandia apenas por nelas ser capaz de recriar mentalmente eventos que mudaram o curso da história, eu admiro aquele panorama azul-verde de águas calmas e quentes, mesmo que desprovida de eventos magnânimos. A Baía já foi testemunha de pessoas que se amavam, que se amaram e que já partiram, lá vivi momentos que marcaram o curso da minha história, como os acampamentos na praia, onde vivemos o de mais doce e mais amargo que a juventude nos permitia ao redor de uma fogueira e de algumas garrafas de vinho. Mas ela já foi testemunha de muitas outras aventuras além das minhas; silenciosa ela guarda muitos segredos que não estão nos livros de história. 

E é assim que eu relaciono meu lugar preferido no mundo com as pessoas que amo e que tanto me fazem ser eu. Meus lugares são eles, onde todas as características até agora citadas se aplicam: a intermitência das marés e de seus humores, a beleza estonteante sem nenhuma óbvia razão, a momentânea abertura que permite em que neles deixe algo e deles traga algo. Em nenhum busco êxitos alardeados, feitos impressionantes ou especialidades e diferenças importantes, pois antes ou depois disso, serão igualmente detentores de um pedaço de mim e eu deles.

A Baía é linda antes ou depois de algo relevante lá acontecer, como um belo quadro de uma paisagem sem nome, mas que teria muito a dizer sobre mim e sobre muitos. A mudez da pintura que não fala senão por suas linhas curvas como uma onda, ou um sorriso, o beijo, a lágrima, o olhar. Como a chuva que cai no sertão que ainda me alegra hoje, mesmo tanto tempo depois de não mais viver as intempéries da seca sertaneja, o que há nas pessoas únicas e raras que amo é esse antes e depois inseparáveis de alguém. É o que me fascina tanto quanto esse lugar e o fato dele ser singular. Eu ainda sou sertanejo, mesmo morando perto do mar. 

Se você quiser me conhecer um pouco melhor, pergunte à Baía ou às pessoas que eu amo, elas com certeza terão histórias para lhe contar, mas nunca, nunca se esqueça de olhar a maré.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

E as tartarugas, o que acham do Meio Ambiente no Brasil?

Fonte: Projeto Tamar

Os humanos que fazem parte do Ministério do Meio Ambiente do Brasil, um lugar habitado por muitos humanos, mas também por tartarugas, lobos, onças, rãs e muito gado, deu mais um passo na direção de avançar no projeto de tirania da espécie dos sapiens na semana passada ao anunciar o fechamento de três bases do Projeto Tamar de Conservação de Tartarugas Marinhas (https://www.otempo.com.br/brasil/projeto-tamar-ministro-ricardo-salles-fecha-tres-unidades-1.2343278). O projeto é conhecido por assegurar áreas protegidas para a reprodução dos répteis testudinos e seu fechamento implica em uma maior competição pelos espaços de ninhada e a consequente maior perda de ovos e filhotes indefesos para os predadores naturais.

O fechamento foi interpretado pelos conservacionistas humanos como um duro golpe para as tartarugas marinhas, que assistem ao assalto impune dessas áreas cruciais para estes répteis, cujas espécies enfrentam, em alguns casos, o risco de extinção. As bases estavam localizadas no litoral do que se chama de estados do Rio Grande do Norte, Bahia e Sergipe.

Diversos primatas mais evoluídos se manifestaram contrariamente à medida, apontando que o fechamento faz parte de um desmonte da rede de proteção ambiental do Ministério que hoje é comandado por primatas menos evoluídos. Os ativistas aproveitam para reiterar o alerta sobre a esgotabilidade dos recursos naturais e dos efeitos balanceadores da natureza para buscar o equilíbrio, causando a diminuição das condições de vida dos mesmos humanos que acreditam estar fazendo o bem ao "passar a boiada".

As tartarugas marinhas, por sua vez, estão preocupadas. O Conselho das Tartarugas Marinhas do Planeta Terra, uma organização não governamental composta por tartarugas de todas as espécies, em nota de repúdio, confessou que suas ações têm sido ineficazes face ao constante avanço belicoso dos humanos. Segundo a nota, os golpes são muitos: ano passado foi um derramamento gigantesco de óleo no Atlântico, acompanhado de taxas recordes de despejo de lixo no mar. O aquecimento das águas como consequência do efeito estufa também foi lembrado, pois tal fato impacta toda a cadeia alimentar da maioria das espécies que coabitam os oceanos. Ainda de acordo com a nota, os bebês-tartaruga agora têm menos chances ainda de sobreviver à altíssima taxa de mortalidade infantil que assola as Testudinas no mundo inteiro.

Os humanos do local conhecido como Brasil, acostumados a notas de repúdio, alegam, contudo, que suas ações não são de todo prejudiciais. Sustentam que boa parte dos humanos já não podem usar "canudos de plástico", fato que não foi plenamente compreendido pelas tartarugas, uma vez que, na língua das testudinas, "canudo de plástico" é traduzido simplesmente como "lixo".

O prognóstico não é nada animador a curto prazo, especialmente para as tartarugas, mas diversas organizações não governamentais compostas por animais como lobos, onças, rãs e bovinos tentam acalmar os ânimos e insistem em manter a calma, pois a cobrança do equilíbrio da natureza já está a caminho. Segundo as ONGs, "a conta é alta e os humanos não têm como pagar, logo, recuperaremos nossa paz sem eles", dando a entender uma possível extinção dos humanos. Embora prazos não tenham sido mencionados, as ONGs afirmam que os sinais de que os sapiens estão perdendo a guerra estão em toda a parte e que o processo não deve demorar muito: "não é mais uma questão de 'se', mas de quando e como".



quinta-feira, 7 de maio de 2020

Uma geração que falhou.




Ultimamente as coisas não vão bem. Não vão bem no plano pessoal e no plano geral, se é que se pode separar tais categorias. Quando eu era criança, acreditava que dava para dividir, que existiam duas partes de uma percepção sobre a vida: aquela referente aos rumos do mundo, do país, da comunidade, da família e dos outros em geral, e aquela que me tocava internamente, meus medos, minhas falhas, minhas conquistas, meus erros. Eu nunca imaginava que elas pudessem se juntar e formar uma espécie de expectativa única da experiência terrena, ainda mais vivendo em uma cidade tão pacata e isolada como era a Caicó dos anos 90.

Hoje eu me pego pensando nos eventos trágicos que testemunhei ainda criança como a morte dos mamonas assassinas, acidentes aéreos, a desvalorização do dólar, Ayrton Senna, a derrota na copa de 98, o 11 de setembro. Todos foram, claro, muito comoventes, mas eu achava difícil me relacionar com eles diretamente, talvez porque fosse muito novo pra entender, talvez porque o Brasil do interior fosse (e ainda é) um local bem diferente do que chamavam de Brasil. Ali, o anonimato é o nome verdadeiro de todos os Joãos e Marias batizados no chão rachado da seca e do descaso. De tanto esquecimento, era facilmente possível viver várias vidas fugitivas no interior do Nordeste sem se preocupar nunca em ser encontrado, mas suponho que até para o foragido mais procurado, o interior do meu Caicó era pena mais dolorosa que prisão no Brasil que passava na televisão. Muito quente, muito longe, muito pobre, muito nada.

Mas a gente vai crescendo e deixando de ser sonhador, ou ao menos trocando os sonhos por uns mais possíveis. Se nos chamavam de geração do futuro, precursora da era da tecnologia, se diziam que seríamos capazes de revolucionar o mundo, tudo isso ficou para trás. A tarefa de minha geração de entregar um mundo melhor está sendo indiscriminadamente sepultada dentro dos caixões enfileirados nas valas comuns.

A realidade da vida adulta conseguiu juntar as duas expectativas em uma só, enfim; suponho que é o fim de uma das magias de ser criança. A minha felicidade, afinal, passa pela felicidade do próximo, do país, do mundo, da comunidade, da família e dos outros em geral. E hoje não está dando para encontrar felicidade em um país onde se cultua a tortura, onde o sofrimento da morte pela obra da ignorância humana é relevado sem pudor, quiçá exaltado, onde a vida da pessoa jurídica é mais importante que a da física. Não dá para planejar e executar os projetos pessoais em um país arrasado por uma doença: a doença do mau-caratismo. As coisas não vão bem no plano pessoal e no plano geral porque eles são uma coisa só, a culpa de não sermos pessoas melhores é toda nossa.


sábado, 2 de maio de 2020

O Himalaia invisível em cada um de nós.

Fonte: Site Folha de S. Paulo, 9 de abril de 2020.

Indianos conseguem enxergar o Himalaia pela primeira vez em mais de 30 anos”. Essa era a manchete curta, mas chamativa. A gente aprendeu que informações curtas e chamativas fazem mais sucesso ao ponto de termos praticamente abandonado o hábito de ler grandes textos ou fazer grandes reflexões amparadas em pesquisas robustas. Talvez o fato de não enxergar o Himalaia esteja relacionado com o fato de não enxergarmos mais muita coisa nessa que chamam de era da informação. Mas apenas talvez, esse não é o tema desse texto, eu quero mais é focar na cegueira daqueles que nunca viram o Himalaia, incluindo eu e você. 

Eu e você nunca enxergamos as montanhas mais altas do mundo porque nunca estivemos lá, segundo consta. Mas o que dizer do habitante de Jalandhar, por exemplo, que mora a 230km da maior cadeia montanhosa do planeta, dos 100 maiores picos do planeta, todos acima de 7200m de altitude, nada menos que o local chamado de “teto do mundo”? Imagine a cena: um belo dia você olha pela janela de sua casa e o que era o céu de fumaça se convertera em um imenso paredão cujos cumes gelados coroam uma majestosa e inimaginável natureza distante poucos metros do seu quintal. Seria como acordar um dia e tocar suas guelras, embora não saiba nadar, ou abrir suas asas longas e fortes e não saiba voar. É como se todos nós fôssemos Usain Bolt’s, mas as pernas só usássemos para apertar um pedal após o outro, num fatigante exercício de repetição enfadonha e mortífera do dia a dia que o sistema nos obriga; engrenagens humanas ao estilo Charles Chaplin do século XXI. Se parar para pensar bem, a gente é mesmo capaz disso, na verdade, essa coisa da autossabotagem e também da autocomiseração: todo mundo quer mudar o mundo, mas que comece pelo outro.

Mas, sem falar de asas ou guelras ou velocistas de olimpíadas, trazendo para um universo mais palpável, como imaginar que qualquer indiano de Jalandhar com menos de 30 anos nunca conseguiu enxergar o seu vizinho imponente simplesmente porque a poluição não o permitia? 

Talvez poluição seja tudo isso que nós fazemos conosco: a nossa submissão ao nosso mundo colonizado, nossa cegueira deliberada frente ao outro, à absurda falta de consciência ambiental porque cremos ser infinitos todos os tempos e matérias, todos os espaços e tudo mesmo, sem exceção. Nunca se produziu tanta informação, tanta pesquisa e, paradoxalmente, nunca enfrentamos tamanha onda de ignorância que anuvia nosso pensar, nosso jeito de viver, de se relacionar, de ser, enfim. Em uma pandemia, até os números de mortes e vida dividem espaço com os números de uma economia que supostamente foi feita para permitir uma melhor gestão disso mesmo, da vida. É o outro que está morrendo, tanto faz. “E daí?”, diria alguém sobre as milhares de vítimas que se amontoam no país onde a ignorância tem um propósito claro de perpetuação do poder dos abutres sedentos por mais e mais dinheiro, mais poluição. Paciência, cada um tem a fumaça que merece.

Não me estranha, na verdade, que aqueles jovens não conheçam as montanhas, tanto quanto eu e você. Não estamos preparados para enxergar o Himalaia que há em cada um de nós que é o amor, a compaixão e a certeza única de que dessa vida nada se leva senão ela própria. A cegueira sempre foi deliberada.