quarta-feira, 24 de junho de 2020

Fogueiras apagadas do São João.

Hoje é dia de São João do ano de 2020. Um dia sem fogueiras, sem abraços, repleto de falta.

Fosse em outros tempos, uma centelha bastaria para acender o fogo vivo que é a lembrança de um tempo de fartura, remissão direta à rica colheita do milho, à curta bonança das chuvas do semiárido, ao sincretismo que toma emprestado da religião seu nome, mas se engancha mesmo nos pecados da música, do suor e da bebida. As memórias da infância chegam a galope e nos levam montados em trajes típicos, dançando quadrilha e respirando fumaça de fogueira a noite inteira, enquanto canjicas, pamonhas e milhos assados revezam entre as bocas sem freio e sem dó. Lembranças e saudades que se traduzem em alegria e despertam na gente aqueles sorrisos bobos como de quem está apaixonado, lembrando da pessoa amada no meio de uma tarde nublada. O São João é um desses patrimônios que a gente pode usar como retrato de humanidade, para não deixar a gente esquecer que vale a pena estar vivo.

Mas para nós, hoje, há esse estalo. Um branco, uma quebra no tijolo. Uma realidade dura que tarda a passar e deixará lembranças, mas não deixará saudades. Uma faca cega que, ao rasgar feridas abertas, expôs o nosso pus como sociedade: desigualdade cruel e persistente que é a verdadeira assassina de milhares de pessoas todo dia. Não é que estejamos enfrentando só uma doença do pulmão, é uma doença da iniquidade e do descuido, que se soma a todas às nossas outras deficiências, defeitos e maldades.

A sensação que fica é de que essa falta corrói, desanima, enluta a mais clara luz do dia. Parece que a fogueira apagada do São João se reflete na frieza de coração peito adentro: parece que ele está assim mesmo, apagado, sem sentimentos, fazendo-nos menos vivos, menos alegres. Ao nos negarem os abraços e os beijos, parece que vai batendo devagarzinho, como se lhe faltasse uma quadrilha, um forró para acelerar, como se lhe faltasse fogo. Para muitos, falta até mesmo compaixão.

Na verdade, a falta de calor no coração é a única que pode matar de desamor um apaixonado e, principalmente, de frio um nordestino. 

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