terça-feira, 9 de junho de 2020

A História Privada da Baía dos Golfinhos.



Antes de ir, sempre olho a maré.

Não, eu não sou uma pessoa do mar; nasci e me criei em um chão rachado de muito calor e pouca água, tanto que a chuva sempre foi o mais esperado e desejado dos eventos. Como as nuvens que a traziam, a chuva costumava vir carregada de emoções, fosse pela constante repetição das minhas tias e de meu avô sobre sua importância para as lavouras, fosse por sua estrondosa celebração entoada de gritos de alegria e emoção quando a cada inverno ela se mostrava, ainda que escassa, fosse pelas maravilhas que ela proporcionava visivelmente, como um bom banho nas biqueiras das casas de toda a cidade ou a aventura tão única de acompanhar objetos serem carregados pelas torrentes que se formavam nas ruas onde durante meses só se via aquele vapor que fazia tremer as imagens que se lhe atravessavam. É engraçado, mas embora a chuva seja um evento natural que, como todos os outros, pode ser tão danoso quanto necessário, para o seridoense ela sempre é bem vinda. Você vai ter que procurar muito até encontrar algum sertanejo que caçoe da chuva e, se encontrar, pode apostar que tal desgosto terá sido momentâneo, passageiro ou ingênuo, como aquelas birras infantis que toleramos por um instante com sofreguidão em troca da alegria e do sorriso quase que perene no rosto das crianças que amamos.

Mas não é bem sobre a chuva que queria falar, mas sim sobre as marés que tenho que olhar antes de ir. Pois bem, não há marés no sertão e isso se reflete muito sobre minha relação com o oceano: o vislumbre mais amoroso que tinha do mar era imaginar como seria caso um cataclisma elevasse as águas do Atlântico e Caicó fosse, enfim, uma cidade praiana, de preferência a nova capital de todo o Nordeste. Esse desejo sempre foi declarado e, ainda hoje, quando tenho que prestar atenção na altura da maré para chegar ao meu lugar preferido no mundo, não deixo de imaginar que ele está intrinsecamente dentro dos limites da terra natal, como se muitos quilômetros fossem nada, como se fosse finalmente uma daquelas praias que eu imaginava na beira do açude Itans, ou na baixa do Rio Seridó, sempre tão secos, mas sempre evocativos de uma grandeza única do Sertão que, na imaginação de quem sonha acordado, um dia viraria mar. 

Ali, onde inequivocamente constato que sou do sertão e não do mar, esse meu lugar favorito no mundo, é a Baía dos Golfinhos, uma pequena faixa de terra parcialmente isolada onde só se alcança pelo caminhar da praia a partir do centro da vila de Pipa. Para se chegar lá, é preciso observar a maré, pois não se consegue atravessar as rochas com as águas elevadas e, ao mesmo tempo, é preciso pensar no tempo em que pretende ficar lá, visto que a momentânea abertura com o resto das coisas lá fora tem hora marcada para se encerrar. Talvez essa tensão entre ser possível ou impossível a depender da hora do dia tenha muito a ver com o amor: tem horas que você ama alguém com toda ternura, mas ela simplesmente está fechada em si, perfeitamente arredia e bela servindo nada mais que a si mesma com suas manias e trejeitos. O amor é como esse abrir e fechar das marés na praia: se for muito, estraga, se for pouco, morre de inanição. E esses mundos são igualmente lindos, esteja eu lá ou não, como a Baía, que noite e dia está lá, há milênios, acompanhando a água subir e descer, o sol lhe queimar a areia e a lua a lhe beijar em seguida, como se fosse para sarar de todo mal.

Mas meu carinho pela Baía tem todo um significado particular. Para mim, ela é importante não só pelo que lá aconteceu, mas também pelo que pode vir a acontecer - ou até não acontecer. Diferente de alguém que, por exemplo, admira as praias da Normandia apenas por nelas ser capaz de recriar mentalmente eventos que mudaram o curso da história, eu admiro aquele panorama azul-verde de águas calmas e quentes, mesmo que desprovida de eventos magnânimos. A Baía já foi testemunha de pessoas que se amavam, que se amaram e que já partiram, lá vivi momentos que marcaram o curso da minha história, como os acampamentos na praia, onde vivemos o de mais doce e mais amargo que a juventude nos permitia ao redor de uma fogueira e de algumas garrafas de vinho. Mas ela já foi testemunha de muitas outras aventuras além das minhas; silenciosa ela guarda muitos segredos que não estão nos livros de história. 

E é assim que eu relaciono meu lugar preferido no mundo com as pessoas que amo e que tanto me fazem ser eu. Meus lugares são eles, onde todas as características até agora citadas se aplicam: a intermitência das marés e de seus humores, a beleza estonteante sem nenhuma óbvia razão, a momentânea abertura que permite em que neles deixe algo e deles traga algo. Em nenhum busco êxitos alardeados, feitos impressionantes ou especialidades e diferenças importantes, pois antes ou depois disso, serão igualmente detentores de um pedaço de mim e eu deles.

A Baía é linda antes ou depois de algo relevante lá acontecer, como um belo quadro de uma paisagem sem nome, mas que teria muito a dizer sobre mim e sobre muitos. A mudez da pintura que não fala senão por suas linhas curvas como uma onda, ou um sorriso, o beijo, a lágrima, o olhar. Como a chuva que cai no sertão que ainda me alegra hoje, mesmo tanto tempo depois de não mais viver as intempéries da seca sertaneja, o que há nas pessoas únicas e raras que amo é esse antes e depois inseparáveis de alguém. É o que me fascina tanto quanto esse lugar e o fato dele ser singular. Eu ainda sou sertanejo, mesmo morando perto do mar. 

Se você quiser me conhecer um pouco melhor, pergunte à Baía ou às pessoas que eu amo, elas com certeza terão histórias para lhe contar, mas nunca, nunca se esqueça de olhar a maré.

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