domingo, 26 de fevereiro de 2023

Do nada ao nada, uma hora vai dar certo.

 


O título desse texto, embora seja aparentemente um pouco deprimente, não é sobre vazios e faltas. Talvez seja justamente o contrário, o de encontrar sentido e preenchimentos para um minúsculo momento que vai do nada ao nada, do zero que existia antes de nascer ao algo diferente do zero, digamos, um novo zero, depois que a gente se vai.

Essa reflexão me bateu numa entrevista que tive com uma pessoa que estava privada de liberdade há uns dias atrás. Estávamos só eu e ele e tínhamos a mesma idade, o que me chamou logo a atenção. Na sala, uma cadeira de escola para cada um e uma mesa nos separando. Entre nós, papéis onde eu anotava coisas que não eram ele, mas uma informação sobre ele que só fazia sentido no mundo dos homens. “Diga-me seu nome, seu número de identificação, onde corre o seu processo, o que houve nesse dia, você precisa de alguma coisa?”.

E ele me dava respostas que só faziam sentido se entendêssemos as coisas dos homens, sobre o tempo do homem, sobre a vida do homem. Ele, preso, porque fez alguma coisa desaprovada por um homem, porque foi assim que convencionaram os homens, porque seus números e dados – ficções usadas para decidir sobre sua vida – disseram que ali ele deveria estar. Eu, solto porque alguém me permitiu, porque foi assim que convencionaram os homens, porque meus números e dados exclusivamente humanos me deram um rumo diferente daquele que diante de mim se sentava na cadeirinha de escola, embora tivéssemos nascido praticamente na mesma data há uns anos atrás.

Eu, filho da terra e da água que habitam esse lugarzinho há bilhões de anos, pequenas partes agrupadas em uma probabilidade minúscula de acontecer, mas que aconteceu. E justamente naquele dia estava eu diante dele, filho da terra, meu irmão, partículas diferentes de água e terra reunidas para formar outro alguém igual - embora diferente - de mim.

Às vezes me pergunto: por que não falamos sobre o tempo das estrelas? Não nos esqueçamos para não perder a ternura jamais: para a natureza éramos apenas eu e ele, duas cadeiras e uma mesa e todo o universo conspirando para que no minúsculo momento marcado entre o nascimento e a morte, pudéssemos ver isso tudo que se passa aqui fora – e aqui dentro. Entre o que vinha antes do nada e o que virá depois do nada, existe uma coisa acontecendo para todos, que é a chance de experimentar a magia e o inferno que é estar vivo.

Éramos nada há alguns anos atrás. Éramos possibilidades e nos tornamos reais. E daqui a alguns anos, seremos apenas uma versão diferente do nada, porque nossas partículas se tornarão outras coisas na dança maluca dessa pequena esfera metálica que flutua sobre o vácuo.

E justamente por não falarmos tanto assim sobre o tempo das estrelas é que estávamos diante do absurdo dessa existência infeliz em que uma pessoa anda solta e outra, presa. Entre nós não havia diferença substancial: as estrelas nos formaram igualzinho, nós nascemos iguaizinhos e vamos morrer para virar mais ou menos a mesma coisa.

Eu não tenho condições de julgar as ações humanas, especialmente as que o levaram até ali, e, se alguém acha que tem, tampouco me oponho. Creio que no nosso atrasado jeito de viver é apenas mais um dos males a que nos submetemos. Salvamos a consciência sacrificando existências. Sempre foi assim, afinal, anda tudo muito mais errado no mundo dos humanos do que certo: nós estamos simplesmente acabando com nossas chances de sobrevivência no planeta vivendo uma vida injusta, ridícula e absurdamente esmagadora para outras pessoas e espécies que compartilham a terra conosco. Não existe uma criança, uma flor, uma formiga ou ornitorrinco que não esteja ameaçado por uma bomba nuclear, por um rio derramando mercúrio ou por uma chaminé vomitando enxofre.

Então o que eu pude dizer para a pessoa sobre as coisas humanas que o oprimiam? Profissionalmente, falei as coisas mundanas que tinha que falar. Mas disse ainda: “aguente firme e seja paciente que há tempo para ser várias coisas nessa vida, esse não precisa ser o seu fim, pois tudo é um novo início”.

Foi o melhor que consegui falar para aliar o mundo humano ao mundo da natureza, mostrar que o nosso minúsculo tempo de existência aqui na terra é grande o suficiente para abraçar o mundo da natureza – que é muito maior que a cabecinha dos homens.

Entre o nada e o nada pode acontecer tudo. E essa é a beleza que vale pra mim, pra você e pra todos.

2 comentários:

Cadu disse...

Nossa, Isaac! Que reflexão dura, complexa e lindamente desenvolvida por você. A vida talvez seja mesmo um
"Nonada" intercalado por universos.

Victoria Rodrigues disse...

Vindo aqui dizer que li essas reflexões esses dias, mas hoje me veio à cabeça de novo. Como é bom ler algo que volta depois. Sinal que não deixou de fazer efeito! Adorei, Isaac :)