segunda-feira, 17 de novembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 3)

Aquela era uma manhã de segunda-feira. O dia anterior fora de comemoração, havia saído com uns amigos para beber em uma praça perto de casa para celebrar o aniversário de um deles. Todos os anos eu me dou esse dia de embriaguez tanto pelo motivo explícito que é o aniversário desse amigo quanto pelo velado, que é a data em que conheci a pessoa que mudou a minha vida.

Antes de sair do seu expediente do domingo, Seu Abel me encontrou no saguão do condomínio. Ele é um senhor daqueles bem cara-de-vô, esguio, cabelo grisalho, armação de metal nos óculos que ainda levavam um durex na extremidade para remendar a perna quebrada e uma lente fundo-de-garrafa que destacava ou escondia o olho verde claro e as olheiras de alguém que já trabalhou muito. Sempre supus que as lentes que ele usava para enxergar a vida tinham uma finalidade adicional, a de se privar de ser enxergado. Parecia até uma barreira que impedia qualquer aproximação, talvez por isso eu soubesse muito pouco ou quase nada sobre sua história.

Seu Abel conhecia todos os 80 condôminos do prédio, suas famílias, visitas desejáveis, indesejáveis e aquelas mais furtivas também. Ele era tão esperto que, com desfaçatez, conseguia fingir perfeitamente uma surdez sempre que lhe era conveniente, especialmente quando era questionado por algum morador sobre o motivo de ser apanhado com o ouvido encostado na porta do apartamento ao detectar o primeiro sinal de uma discussão mais acalorada lá dentro. Aquele meu vizinho, o argentino apreciador de charutos, detestava-o justamente porque, dentre a série de palavras em espanhol que havia decorado de tanto bisbilhotar as discussões dentro do apartamento do portenho, a única que ele fazia questão de repetir sempre que fosse possível ser ouvida pelo morador era 'maricón'.

No domingo, Seu Abel me parou quando eu estava de saída para o aniversário para me contar que o condomínio estava doando mudas de plantas e rosas. Perguntou se eu não queria uma muda de Cambará pois eu levava um pequeno ramalhete de flores brancas na mão direita e um litro de whisky na esquerda. Olhei para ele disse que sim, que se pudesse, deixasse algumas dentro de um vaso que havia na varanda e para a qual ele tinha acesso independente de minha presença.

Até tinha esquecido como aquelas flores tinham chegado ali quando abri a cortina e olhei o vaso repleto daquela enormidade de pequenos botões rosa clareadas pela luz do sol. Cambarás são ótimas para atrair borboletas e, talvez por isso ou pelo acaso, havia uma bem grande pousada bem no meio do pequeno arbusto, batendo as asas lentamente, como que se me encarasse, como que se me conhecesse.

Pouco depois desse momento de contemplação mútua, ela voou, acho que assustada pelo telefone tocando. No identificador de chamadas lá estava:  Lara ✩ . 

A razão da minha inquietação com aquela ligação era porque ali, naquele celular, naquele exato momento de insolação, de ressaca e de realidade quase fantástica estava chamando o nome da pessoa que tinha mudado minha vida e para a qual eu tinha levado flores à sua morada no dia anterior como forma de homenagear o dia em que nos conhecemos. Lara morrera há uns três anos por complicações de uma cirurgia ortopédica quando tinha só 27 anos.

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