quinta-feira, 20 de novembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 4)

Então foi tudo nessa ordem: Seu Abel, flor, whisky, ressaca, sol, borboleta, jornal, telefonema e, por último, eu mesmo, apenas mais um elemento nessa provável ou improvável sequência de eventos aleatórios que só fazem algum sentido se eu conseguir contar um pouco do que se passou antes que eu atenda a fatídica ligação.

Lara foi uma joia na terra. Não era uma pedra preciosa ou um metal nobre, mas uma rara pedra vulcânica, pois que lapidada pelo vento e pelo mar que separa os continentes. Pedra da cor de seus olhos negros porque sua constituição era de ebulição, de transformação; magmática e enigmática. Leve, flutuava sobre qualquer subjetividade superficial que ousasse determinar sua ligação com qualquer pedaço de chão... para Lara, éramos qualquer coisa do próprio e de vários chãos, fossem eles azulejos portugueses, leitos de rios guineenses, asfaltos paulistanos ou mesmo o salitre daquelas paredes e pessoas corroídas de Natal.

Como toda boa joia, seu valor alto sempre despertou cobiça. Era disputada acirradamente por todos os seus amigos antigos e pelos novos também, para os quais ela escrevia formulários para verificar a afinidade em temas essenciais como: sabor preferido de terra, combinação de roupas e acessórios para usar no caso de eventos apocalípticos, impactos de asteroide, invasões alienígenas... além disso tinha os ensaios caseiros para a dublagem do especial de natal da rede globo em quatro ou mais línguas.

Não conseguia conter sua histeria nem mesmo quando decidiu, motivada por uma aposta com um amigo, virar vegetariana. Continuou frequentando o macdonalds e era motivo de risada quando pedia seus sanduiches sem hamburguer. Gostava de se denominar como borboleta, talvez pela metamorfose de si e de suas decisões, mas também porque podia voar.

A dificuldade de adaptar-se à normalidade refletia-se, por paradoxo, em uma exímia capacidade de analisá-la. Enxergava do alto os acontecimentos e os diagnosticava com precisão. Não foi à toa que escolhera ser psicóloga; não foi à toa que me ensinara a olhar o mundo com aqueles olhos que pareciam miniaturas de seu universo particular, absortos pela natureza e por sua complexa simplicidade. Por suas asas de borboleta eu voei e vi, junto com ela, que a existência tinha sim limites, mas o mundo não.

Seus insanos planos de dominar o mundo sobre uma lambreta com seu pato de estimação na garupa acabaram por ser seu acaso fatal. Frankly my dear, she didn't give a damn. O vento a levou para longe, para lá de onde minhas rosas brancas possam exalar seu cheiro para relembrá-la. Mas trouxe-a para mim naquela manhã ensolarada, quando seu número aparecia no display do meu celular.

Atendi. Era sua irmã que havia chegado de viagem para passar alguns meses e queria me encontrar.

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