segunda-feira, 24 de novembro de 2014

É o que se tem para hoje. (parte 5)

Você tem que confessar junto comigo que receber a ligação do número de alguém que já morreu é, no mínimo, desconcertante. Tudo bem, é plausível que o receptor de uma chamada dessas se dê conta um ou dois segundos depois do choque que um número é só um número e uma pessoa é só uma pessoa. Pessoas não são números, muito embora a gente (in)conscientemente designe algarismos para contar os eventos que impactam as vidas únicas, singulares e de valores imensuráveis de cada um de nós. Inclusive fiz isso quando acordei e me senti mais tranquilo só por realizar que estava aqui, nesse hemisfério, nessa cidade quente, nesse coletivo insano de sanidades irreais e fabricadas onde lobos e loucos se confundem cara a cara.

Uma coisa me dá certeza que estamos numa matilha faminta onde tudo e nada se justificam: a efêmera existência. A justiça que nós inventamos não passa de mera tentativa de acomodação das mútuas realidades, da minha, da sua, por exemplo. Seu Abel não gosta do argentino e, para ele, a existência daquele outro é irrelevante. Entretanto, para o universo, os dois são mais efêmeros que um sopro de vento. E pelo jeito que as coisas andam, sopros de vento carregando o som de nossas agonias e angústias serão tudo que restarão nesse teatro em chamas do qual hoje corremos afobados procurando saída, mas que cujas portas estão trancadas. Estamos todos sufocando na peça da vida mimetizada em poluição, em violência, em desamor.

E Lara era a foice e o martelo da oposição a isso tudo. A sua morte prematura e inesperada foi o significado maior que não vivemos em um mundo cujas bases são "justas", senão apenas fisicamente equilibradas. Não existem balanças no nosso pequeno planeta humano, só foices e martelos. Ela se foi depois de sofrer as complicações de uma cirurgia simples após um acidente banal de motocicleta. É tudo tão efêmero, foi tudo tão absurdo e tão clinicamente elaborado pelo acaso. Não venham me dizer que foi obra de algum ente superior escrevendo certo por linhas tortas porque isso definitivamente não é verdade.

Em seu pequeno plano individual, a tudo e a todos Lara deslumbrava de tanto amor. Deslumbrante, esse é o termo ideal para representá-la. Melhor que falar de seus olhos negros, de sua composição magmática, de sua semelhança com as borboletas, é apenas lembrar de seu caráter deslumbrante, que, na verdade, é o adjetivo que iguala todas as suas metáforas. 

Nós não precisamos ser números que contabilizem sete bilhões de atores e plateia queimando seus papeis enquanto enlouquecem com o sobe e desce da bolsa de valores; nós não precisamos ter a certeza relembrada a todo momento que moramos no pior lugar do mundo, independente de onde ele seja.

Nós precisamos mesmo é de desconstruir todas as portas fechadas desse teatro chamuscante, edificado meticulosamente por séculos de opressão. Deixar de ser números, de sermos as numerosas vítimas de homicídios, de sermos a maioria da população que não ganha o mesmo que a minoria por havermos nascido mulher, de sermos um povo aviltado de direitos pelo ódio do preconceito e pelo carma da escravidão, de sermos abnegados de posições e direitos pelas diferentes silhuetas... de sermos mais efêmeros que o vento. A gente precisa mesmo é de mais pessoas e menos números. A gente precisa que todos sejam encharcados de amor em todas as suas formas.

E pensando nisso tudo é que a ideia de atender a ligação que logo soube ser da irmã de Lara, naquele instante, onde minha mente fecundara em arremedos de filosofia barata e fundira pelo calor do sol - e do momento -, me soou no mínimo desconcertante. Ela queria se encontrar comigo pois havia chegado de viagem e tinha saudade dos amigos que deixara aqui em Natal, amizades cuja fundação fora sedimentada pelo intermédio da irmã.



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